Suely Rolnik
 
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Anthropophagic Subjectivity
Bienal de São Paulo, 1998.

Today's world: an infinite ocean churned up by swirling waves – different flows with no possibility of the totalization they would have in delineated territories, with no stable frontiers, in constant rearrangements. In the opinion of some, a second flood – except that this time the waters will never recede, never more will there be land in sight, there are many arks, and they will drift forever, captained by myriads of Noahs of all shapes and sizes.


Lygia Clark e o híbrido arte/clínica

« Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as realidades das contradições? Quantas alegrias e dores meu corpo se abrindo como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que está secreto dentro de meu eu? Dentro de minha barriga mora um pássaro, dentro do meu peito, um leão. Este passeia pra lá e pra cá incessantemente. A ave grasna, esperneia e é sacrificada. O ovo continua a envolvê-la, como mortalha, mas já é o começo do outro pássaro que nasce imediatamente após a morte. Nem chega a haver intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçadas.»


Pássaros e leões nos habitam, diz Lygia - são nosso corpo-bicho. Corpo-vibrátil, sensível aos efeitos da agitada movimentação dos fluxos ambientais que nos atravessam. Corpo-ovo, no qual germinam estados intensivos desconhecidos provocados pelas novas composições que os fluxos, passeando para cá e para lá, vão fazendo e desfazendo.

L'hybride de Lygia Clark

Suely Rolnik

«Combien d'êtres suis-je pour aller chercher toujours dans l'être qui m'habite les réalités des contradictions? Combien de joies et de douleurs mon corps s'ouvrant comme un gigantesque chou-fleur a-t-il offert à l'autre être qui est secret en moi? Dans mon ventre habite un oiseau, dans mon coeur, un lion. Celui-ci n'en finit pas de se promener de ci, de là. L'oiseau grogne, trépigne et finit par être sacrifié. L'oeuf continue à l'envelopper, comme un suaire, mais c'est déjà le début d'un autre oiseau qui naît immédiatement après la mort. Il n'y a pas même d'intervalle. C'est le festin de la vie et de la mort entrelacées.»


Des oiseaux et des lions nous habitent, dit Lygia - ils sont notre corps-bête . Corps-vibratile, sensible aux effets du mouvement des flux des univers qui nous traversent. Corps-oeuf, dans lequel germent des états intensifs inconnus provoqués par les nouvelles compositions que les flux,


Instaurações de Mundos

Conveniente se fazia investigar a peculiar natureza daquele ícone. Não acredito na brumosa semiologia, em improváveis exegeses menos ainda... O que poder-se-ia cultivar sob aquele signo? Fênix sim, um fênix diria, o retorno, a recorrência, a obstinada volta! Algo mais concreto, no entanto, posso agora afirmar, pois me lembro de que o que vira fora talvez o fruto de uma outra cultura, não menos estranha mas bem mais palpável... Tratava eu naquela época do cultivo de espécimes com o inconfessável propósito: ‘Experimentadores ocasionais’... Encontro-me na porta desta torre e o fênix me reaparece, estando eu a plantar outro jardim, numa floresta mesmo, semeando sereias.

Tunga, “Semeando Sereias”

Chumbo, ouro, prata, cobre, aço, latão, alumínio, limalha de ferro, madeira, borracha e argila; mas também gelatina, ímã, pólvora, ácido sulfúrico e éter; velas, líquido luciferino, lâmpadas, lamparinas, lanternas e lampiões; baton, perucas, cabeleiras, tranças, laços de cetim, pentes, pérolas, seda pura, agulhas e dedais; gêmeas, ninfetas, top-models, atrizes de telenovela, campeãs de atletismo, estrelas nacionais de brilho internacional; fragmentos de velhas canções, filmes, computadores, projetores,

 

An Instauration of Worlds

It would be worth investigating the peculiar nature of that icon. I don't believe in hazy semiology, let alone improbable exegesis. What could be cultivated under such a sign? A phoenix. Yes, a phoenix, I would say – a return or recurrence, that stubborn return! I can, however, assert something more concrete, for I remember that perhaps what I saw was the fruit of another culture, no less strange but much more palpable... At the time, I was dealing with cultivating specimens with an inadmissible purpose: “casual experimenters.” I now find myself at the door to that tower and the phoenix reappears, as I am planting another garden, in a forest, sowing sirens.

Tunga, Semeando Sereias (Sowing Sirens)


Lead, gold, silver, copper, steel, scrap metal, aluminum, iron filings, wood, rubber, and clay – but also gelatin, magnets, gunpowder, sulphuric acid, and ether; candles, liquid luciferin, lamps, gas lamps, and lanterns; lipstick, wigs, heads of hair, braids, satin bows, combs, pearls, pure silk, needles, and thimbles; twins, nymphets, super-models, soap-opera actresses, athletic champions, Brazilian stars who shine internationally; fragments of old songs, films, computers, projectors


Figures nouvelles du chaos
les mutations de la subjectivité contemporaine

Le mot chaos est actuellement l’un des mots les plus fréquemment prononcés. Il est le thème cult de congrès, ouvrages de vulgarisation scientifique, articles de presse et même émissions de télé; il est sujet obligé dans tous les domaines de la culture. Et sans aucun doute il ne s’agit pas là d’une simple mode, mais bien d’une exigence que la réalité contemporaine nous impose: nous confronter au chaos,


Novas figuras do caos
mutações da subjetividade contemporânea
*

In Caos e Ordem na Filosofia e nas Ciências, org. Lucia Santaella e Jorge Albuquerque Vieira. Face e Fapesp, São Paulo, 1999; pp. 206-21.


A palavra “caos” é das mais pronunciadas na atualidade. Tema cult de congressos, livros de divulgação científica, artigos de jornal e até programas de TV, fala-se de caos em todos os campos da cultura. Com certeza, não se trata de um mero modismo, mas de uma exigência que a realidade contemporânea vem nos colocando: enfrentar o caos,


Confiança

Confiança é uma sucessão de planos do cotidiano de existências rigorosamente ordinárias, no universo suburbano de uma cidadezinha norte-americana. Poderiam pertencer a qualquer universo urbano ou suburbano, em qualquer lugar do mundo, pois o que está em foco aqui não é tanto o tipo de cidade ou de universo dentro da cidade, mas a banalidade em sua expressão urbana contemporânea - uma “estética da banalidade”, como declara seu autor, o cineasta Hal Hartley.


Deleuze, esquizoanalista

No relato de um pequeno episódio, toma vulto a figura inesperada de um Deleuze esquizoanalista. Através de certas ressonâncias deste episódio na subjetividade, o leitor poderá acompanhar alguns meandros de um trabalho com o desejo que se orienta especialmente pela cartografia conceitual deleuziana.

 

Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer...

Trata-se de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto.
Gilles Deleuze e Félix Guattari


Uma “instauração” é o que Tunga propõe para a parceria entre A Quietude da Terra e o Projeto Axé. Ela acontecerá na abertura da exposição no Museu de Arte Moderna da Bahia.

 

I. Chapter: Overviews, Views and Reviews
II. Section: Essay
III. Title: For a State of Art: The actuality of Lygia Clark
IV. Author: Suely Rolnik
V. Number of Words: 3.039 words

São Paulo, Sunday, May 15, 1994 (1). I am lying on the ground, blindfolded; a commotion of anonymous bodies moving around me. I don’t know what will happen. A complete loss of reference points: apprehension, disquiet. I surrender. Pieces of bodies without image , gain autonomy and begin to act on me: anonymous mouths shelter bobbins for sewing machines, the threads coated with saliva are noisily unwound by equally anonymous hands, to then be placed on my body.


Guerra dos gêneros & guerra aos gêneros
*



No visível, o óbvio: uma guerra entre identidades sexuais, lutando por seus interesses; especialmente o assim chamado gênero feminino oprimido em luta contra o assim chamado gênero masculino, seu opressor.


Toxicomanes d’identité
la subjectivité en temps de globalisation

La globalisation de l'économie et les progrès technologiques, notamment dans le domaine des média électroniques, rapprochent les univers les plus divers, où qu'ils soient sur la planète, en une variabilité et en une densification de plus en plus grandes. Les subjectivités, quel que soit leur site, ont tendance à être peuplées par les affects de cette profusion changeante d'univers. On assiste à un constant métissage de forces dessinant des cartographies mutables et tenant en échec les contours qui habituellement les délimitent.

 

Hal Hartley et l'éthique de la confiance

Le film Trust trace le portrait d'une idée. C'est ce que déclare Hartley lui-même à Bernardo de Carvalho dans un article publié par le quotidien Folha de São Paulo, et, ajoute-t-il, c'est cela, bien plus qu'une tentative de forger un naturalisme, qui constitue le véritable réalisme. Mais pourquoi considérer que le naturalisme ne peut être que forgé? Sans doute parce que pour Hartley, faire du naturalisme c'est adopter la perspective du sens commun, se confondre à lui, le prendre pour la nature des choses.


Molda-se uma alma contemporânea:
o vazio-pleno de Lygia Clark

In The Experimental Exercise of Freedom: Lygia Clark, Gego, Mathias Goeritz, Hélio Oiticica and Mira Schendel, The Museum of Contemporary Art, Los Angeles, 1999.


“A literatura (cf. a arte) aparece então como um empreendimento de saúde: não que o escritor (cf. o artista) tenha forçosamente uma saúde de ferro (...), mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provem do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. (...) Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem?”
Gilles Deleuze



Lygia Clark é o nome de uma existência convulsionada pela irrupção de uma idéia que tomará corpo no conjunto de uma obra ímpar, que se elabora passo a passo, dos anos 50 aos 80.


Molding a Contemporary Soul: The Empty-Full of Lygia Clark


“Literature (cf. art) thus appears as an undertaking of health: not that the writer (cf. the artist) necessarily has a strong constitution (…), but he enjoys a fragile irresistible health, which comes from the fact of having seen and heard things that are too big for him, too strong, unbreathable, whose passing exhausts him, but nevertheless permits him becomings that fat, dominating health would make impossible. (…) What kind of health would be enough to free life wherever it is imprisoned by man and in man?”
Gilles Deleuze

Lygia Clark is the name of an existence convulsed by the eruption of an idea that gradually took shape throughout the totality of a unique oeuvre. Being elaborated step by step from the 1950s to the 1980s, this idea situated itself on the horizon of one of the most insistent issues facing modern art–that

Quarar a alma


Dormir ao relento de uma tensa cidade, em qualquer lugar, de qualquer jeito – provavelmente um dos momentos mais ásperos na vida de um morador de rua. É a privação do ritual que uma vez por dia instaura uma pausa na realidade e forma um nicho mental, protegido do mundo, suas exigências, suas tormentas. Repouso do corpo e do espírito, território do sonho, fonte de energia e ainda, em algumas culturas, alcova da entrega amorosa. Da casa burguesa à tenda nômade,

 

Un voyage insolite à la subjectivité
frontières avec l’éthique et la culture

Commence ici un voyage inusité au monde de la subjectivité. Ce sera, tout particulièrement, la curiosité à l’égard de ses régions frontalières avec l’éthique et la culture qui nous guidera au cours des sept étapes de cette aventure.

Première étape. Nous sommes encore quelque peu distraits. Pour l’instant nous n’entrevoyons de la subjectivité qu’un profil d’un mode d’être - de penser, d’agir, de rêver, d’aimer, etc. - qui découpe l’espace en un intérieur et un extérieur.

Uma insólita viagem à subjetividade
fronteiras com a ética e a cultura


Tem início aqui uma inusitada viagem ao mundo da subjetividade. Uma especial curiosidade em conhecer suas regiões fronteiriças com a ética e a cultura estará nos direcionando ao longo das sete etapas desta aventura.

Primeira etapa. Ainda estamos um tanto distraídos.

Por um estado de arte
a atualidade de Lygia Clark

São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994 . Deitada no chão, olhos vendados, alvorôço de corpos anônimos agitando-se em torno de mim; não sei o que pode vir a se passar. Perda total de referências, apreensão, desassossego. Estou entregue. Pedaços de corpos sem imagem destacam-se, ganham autonomia e começam a agir sobre mim: bocas anônimas abrigam carretéis de máquina de costura, cujas linhas lambuzadas de saliva são ruidosamente desenroladas por mãos igualmente anônimas, para em seguida depositá-las sobre meu corpo.


Toxicômanos de identidade
subjetividade em tempo de globalização
*

In “Toxicômanos de identidade. Subjetividade em tempo de globalização”, in Cultura e subjetividade. Saberes Nômades, org. Daniel Lins. Papirus, Campinas 1997; pp.19-24.

A globalização da economia e os avanços tecnológicos, especialmente a mídia eletrônica, aproximam universos de toda espécie, situados em qualquer ponto do planeta, numa variabilidade e numa densificação cada vez maiores. As subjetividades, independentemente de sua morada, tendem a ser povoadas por afetos desta profusão cambiante de universos; uma constante mestiçagem de forças delineia cartografias mutáveis e coloca em cheque seus habituais contornos.