PLISSÊ FRACTAL
OU COMO AS MÁQUINAS DE
GUATTARI PODEM NOS AJUDAR A PENSAR O TRANSCENDENTAL HOJE
Pierre Lévy
O pensamento deve lançar-se acima
dos “fatos” para interrogar-se, não apenas sobre suas causas mecânicas,
mas também sobre o que os faz serem o que são, sobre os agenciamentos
de enunciação de que eles são os enunciados, sobre
os mundos de vida e de significação do magma dos quais eles
surgem. Remontar até às fontes, tal é o sentido do
problema do transcendental.
Através de que há um mundo?
A história da filosofia e, parcialmente, a da ciência, podem
ser consideradas como o conjunto de proposições que foram
articuladas para responder esta questão. Evidentemente não
é possível retomar aqui toda a história da filosofia
e nem mesmo resumí-la. Contentar-nos-emos com algumas sondagens
inspiradas por alguns trabalhos recentes, depois mostraremos como as máquinas
de Guattari (que podem ser tudo, exceto mecânicas) nos ajudam hoje
a re-colocar este problema.
No lugar sem lugar da origem sempre presente,
será preciso eleger, depois de Kant, um sujeito transcendental do
conhecimento? Ou então, como os cognitivistas contemporâneos,
uma arquitetura do sistema cognitivo humano? Isto nos remete imediatamente
a uma nova instância, pois o fundamento biológico do sujeito
cognitivo está no cérebro, como pensam hoje os conexionistas
e os adeptos do homem neuronal. Ora, mesmo correndo o risco de situar a
última fonte no estrato biológico, não seria preferível
considerar o organismo inteiro, suas operações recursivas
e sua autopoiése, como o sujeito cognitivo último, aquele
que calcula seu mundo? Nisto seguiríamos toda a corrente da segunda
cibernética, especialmente ilustrada por von Foerster, Maturana
e Varela. Teríamos então atingido o termo? Não, pois
o organismo tal como ele é, remete duas vezes às contingências
da História: o “fora” intervém uma primeira vez através
da construção ontogenética e da experiência
de vida; ele se aloja uma segunda vez no coração do organismo
específico ao acaso da filogênese. A evolução
biológica, por sua vez, não pode se separar da história
infinitamente bifurcante e diferenciada da biosfera, e até mesmo
além, ela se conecta rizomaticamente com a terra, com suas redobras
e seus climas, com os fluxos cósmicos, com todas as complexidades
da physis e de seu devir.
Ao invés de conduzir, gradativamente,
do cognitivo ao biológico e do biológico ao físico,
a meditação do sujeito transcendental do conhecimento pode
remeter a seu outro: o inconsciente dos afetos, das pulsões e dos
fantasmas. Mas, ainda aqui, é impossível deter-se no inconsciente
freudiano como um termo último. Guattari e Deleuze mostraram que
o dito inconsciente não se limita a um reservatório de desejos
incestuosos ou agressivos recalcados, mas que está aberto sobre
a História, a sociedade e o cosmo. O inconsciente total, que não
é mais concebido como uma entidade intrapsíquica, são
os agenciamentos coletivos de enunciação, os rizomas heterogêneos
ao longo dos quais circulam nossos desejos e pelos quais se lançam
e se relançam nossas existências. Ora, não se pode
estabelecer uma lista a priori de tudo o que entra na composição
dos agenciamentos de enunciações e das máquinas desejantes:
lugares, momentos, imagens, linguagens, instituições, técnicas,
fluxos diversos, etc. E finalmente, de novo, descobrimos que o termo último,
ou melhor, o horizonte sem fim do transcendental, aqui nomeado “inconsciente”,
bem poderia ser o próprio mundo.
Voltemos à encruzilhada de onde partimos,
o sujeito do conhecimento, para seguir uma terceira via, aquela da empiria.
A experiência não é originária? E antes mesmo
da experiência, os sentidos que a tornam possível? Em Os cinco
sentidos, Michel Serres conseguiu a proeza de construir, a partir de cada
uma das modalidades sensoriais, uma metafísica, uma física,
uma gnosiologia, uma estética, uma política e uma ética.
A sensação seria, por conseguinte, fundadora. Mas o próprio
do tato, da audição, do olfato, do paladar e da vista não
seria o de se remeter ao mundo? Se a percepção faz existir
para nós o fora, por outro lado, é também sobre o
devir e o terrível esplendor do mundo que repousa a vida dos sentidos.
Ser, é ser percebido, dizia Berkeley. A percepção
e o mundo sensível são duas faces, as duas bordas da mesma
dobra. Por uma reversão talvez previsível, o livro seguinte
de Michel Serres, Statues, punha a coisa, a massa, a exterioridade a mais
densa no fundamento dos coletivos humanos, das subjetividades e do conhecimento.
O empirismo situa o mundo no coração do conhecimento. É
o que Kant, que havia pretendido colocar o sujeito no centro, demonstrou
muito bem em sua metáfora da “revolução copernicana”
em filosofia. Mas por mais que se queira expulsar o mundo pela grande porta
do transcendental, ele volta pelas janelas do corpo, sob o aspecto de imagens
impalpáveis que habitam e fazem viver o sujeito, e pela força
do tempo, que tudo transforma.
Explorando outras vias, podemos remontar
o sujeito individual às significações sociais que
o habitam, ao imaginário instituinte que o atravessa (Castoriadis),
à remissão historial que o destina (Heidegger), aos épistémai
que estruturam seu discurso (Foucault) etc. Recordemos que a principal
aporia, quando se considera um transcendental histórico existe,
mas sob o efeito de que causas, de que devires inominados, ele se metamorfoseia
permanentemente? Se concebêssemos causas e efeitos na região
transcendental, o que então a diferenciaria do campo empírico?
Todo o fatual e o contigente da História (geografia, quedas de impérios,
propagações de religiões, invenções
técnicas, epidemias etc.) não retroage sobre a região
historial? Não resultam as idas e vindas do transcendental histórico,
de efeitos ecológicos, de processos cosmopolitas? Mais uma vez,
para compreender aquilo através de que há um mundo,
nós somos conduzidos à complexidade e aos redemoinhos do
próprio mundo.
Primeira abordagem da dobra
Com efeito, é sempre o mundo, sua
multiplicidade indefinida, sua realidade, sua materialidade, sua topologia
singular, as contingências de seu devir, Cosmópolis povoada
de coletivos heterogêneos ao infinito e em todas as escalas de descrição
é, finalmente, o próprio mundo que se descobre, cada vez,
acima do complexo vital de significações que o faz ser tal
mundo para nós.
Pelas metáforas e imagens recebidas,
pelas significações culturais a nós transmitidas (implicando
em suas dobras fragmentos holográficos de natureza), pelo inconsciente
maquínico conectado ao fora, pelas técnicas materiais, as
escrituras e as línguas sob a dependência das quais pensamos
e produzimos nossas mensagens, tudo aquilo através do que experimentamos
e vivemos o mundo é precisamente o próprio mundo, a começar
por nosso corpo de sapiência.
Mais do que grosseiramente adaptado ao seu
nicho-universo, o organismo vivo é certamente seu produtor; nisso
é preciso seguir Varela. Mas devemos reconhecer igualmente que o
mundo exterior, ou se quisermos, “o meio”, já está também
sempre incluído no organismo cognoscente que produz. No vivo, o
mundo se redobrou localmente em máquina autopoiética e exopoiética,
produtora de si e de seu fora. Acima do mundo empírico experimentado
por nós, o mundo transcendental que evocamos aqui não é
certamente redutível a algum estrato físico, ou biológico,
ou social, ou cognitivo, ou qualquer outro. Tampouco é a soma ordenada
ou bem articulada dos estratos. Trata-se do mundo como reserva infinita,
trans-mundo, sem hierarquia de complexidade, sempre e por toda parte diferente
e complicado: Cosmópolis.
Corpos, culturas, artifícios, linguagens,
significações, narrações... o empírico
torna-se transcendental e o transcendental faz advir um mundo empírico.
“Isso” se dobra e se redobra em transcendental e empírico. A dobra
é o acontecimento, a bifurcação que faz ser. Cada
dobra, ação-dobra ou paixão-dobra, é o surgimento
de uma singularidade, o começo de um mundo. A proliferação
ontológica é irredutível a uma ou outra camada particular
dos estratos; igualmente irredutível a qualquer dobra-mestra como
aquela do ser e dos entes, da infraestrutura e da superestrutura, do determinante
x e do determinado y. O mundo total e intotalizável, o trans-mundo
cosmopolita, diferenciado, diferenciante e múltiplo é, ao
contrário, infinitamente redobrado, ele fervilha de singularidades
nas singularidades, de dobras nas dobras. As oposições binárias
maciças ou molares como a alma e o corpo, o sujeito e o objeto,
o indivíduo e a sociedade, a natureza e a cultura, o homem e a técnica,
o inerte e o vivo, o sagrado e o profano, e até a oposição
de que partimos entre transcendental e empírico, todas essas divisões
são maneiras de dobrar, resultam de dobras-acontecimentos singulares
do mesmo “plano de consistência” (Deleuze e Guattari). “Isso” poderia
ter se dobrado de outra maneira. E como a dobra emerge num infinitamente
diversificado mas único, sempre se pode remontar ao acontecimento
da dobra, seguir seu movimento e sua curvatura, desenhar seu drapê,
passar continuamente de um lado para o outro.
A alma e o corpo para Gilbert Simondon
De sorte que, como o demonstrou Gilbert Simondon,
não há substâncias, mas processos de individuação,
não há sujeitos, mas processos de subjetivação.
A subjetivação como ação ou processo continuado
constitui um “dentro”, que não é outro senão “a dobra
do fora” (Deleuze). Os dualismos achatam e unificam violentamente o que
eles distinguem, impedindo, assim, de localizar as dobras e as curvaturas
pelas quais passam as regiões do ser, uma na outra. “Descartes não
apenas separou a alma do corpo; ele criou também, no próprio
interior da alma, uma homogeneidade e uma unidade que proíbe a concepção
de um gradiente contínuo (sublinho, P. L.) de distanciamento em
relação ao eu atual, reunindo as zonas as mais excentradas,
no limite da memória e da imaginação, a realidade
somática.” (Gilbert Simondon, L’individuation psychique et collective,
p. 167)
A alma e o corpo, apreendidas como multiplicidades
diferenciadas, comunicam-se por suas zonas de sombra. A consciência
livre, racional e voluntária, de um lado, o mecanismo físico-químico
dos órgãos, de outro, se juntam pelas sensação,
pelo afeto, toda a obscuridade psicossomática do desejo, da sexualidade
e do sono. O maquinal, o reflexo, o herdado do psiquismo, toda a divisão
e a exterioridade do espírito a si mesmo o redobram para o somático,
fazem-no tornar-se corpo.
A união psicossomática só
se torna um problema se tentarmos conectar as extremidades da dobra, que
são apenas dois casos limites: de um lado, a consciência clara
e racional; do outro, o corpo-matéria ou o cadáver auto-móvel.
Mas a alma e o corpo sempre já se comunicam pela dobra que os refere
um ao outro, pelas multiplicidades negras da curvatura, que formam a maior
parte do sujeito.
O esforço para seguir a dobra, esboçado
aqui sobre o caso da alma e do corpo, deveria ser levado a todas as oposições
molares. A cada vez, no lugar de entidades homogêneas e bem recortadas,
descobriríamos um plissê fractal (Mandelbrot), uma infinita
diferenciação do ser segundo dobras, passando continuamente
umas nas outras.
A ciência e a sociedade em Bruno Latour
O que Gilbert Simondon assinalou sobre as
relações da alma e do corpo, Bruno Latour mostrou no caso
da ciência e da sociedade. O autor de La science en Action mergulhou
a ciência e a técnica no grande coletivo heterogêneo
dos homens e das coisas. Mas seria um erro acreditar que ele negou toda
especificidade à tecnociência, uma vez que ele mostra as forças
díspares que a compõem.
A ciência e a técnica emergem
de uma mega-rede heterogênea, elas contribuem, em contrapartida,
para atá-la, curvá-la de outra maneira. Ciências e
técnicas resultam de uma dobra do coletivo cosmopolita, que se redobra
em ciência das coisas, de um lado, e em sociedade dos homens, de
outro.
Há certamente uma identidade (múltipla
e variável) da ciência, um estilo de dobra, um regime de enunciação
que a singulariza. Mas um pensador rigoroso não pode se atribuir
a particularidade produzida por um acontecimento (por mais continuo que
seja) sem ter percorrido previamente a dobra que a efetua. Ele não
pode atribuir a essência antes do processo. Antes de qualquer especificidade
do conhecimento científico e da eficácia técnica há,
primeiramente, uma maneira de dobrar entre a verdade das coisas em si e
o conflito hermenêutico das subjetividades. Esse tipo de divisão
se redobra sempre novamente, no próprio seio da atividade científica,
e poderia sempre se dobrar de outro modo ou em outro lugar. Uma tal proposta
científica teria se situado na face social ou demasiado humano da
divisão se a dobra tivesse passado mais longe. Como para a alma
e o corpo, o trabalho que consiste em reencontrar e desenhar a dobra não
pode se realizar sem dissolver a unidade e a homogeneidade das regiões
que ele distingue. Apesar de todas as analogias possíveis, a dobra
que singulariza a ciência não é idêntica, por
exemplo, àquelas que fazem sobreviver a justiça, a beleza
ou a santidade.
As leis do inerte e o milagre do vivo em
Prigogine e Stengers
De todos os contemporâneos exploradores
de dobra, Ilya Prigogine e Isabelle Stengers estão indubitavelmente
entre os mais notáveis. Em suas duas dobras, Entre le temps et l’éternité
e La nouvelle alliance, eles tentaram por abaixo a cortina de ferro ontológica
que uma certa tradição filosófica havia construído
entre os seres (o em si) e as coisas (o para si). Apoiando-se sobre os
últimos desenvolvimentos da ciência contemporânea, a
filósofa e o prêmio Nobel renovaram profundamente a filosofia
da natureza. Lendo-os, redescobrimos na physis a irreversibilidade do devir
e o carácter instituinte do acontecimento, que acreditávamos
reservados aos universos do homem (desde que se pensa a História)
e da vida (desde a descoberta da evolução biológica).
Os processos distantes do equilíbrio e os sistemas dinâmicos
caóticos conectam, por uma dobra que permaneceu invisível
por muito tempo, a necessidade estática do mecanismo e o acaso miraculoso
da auto-organização viva. A partir do momento em que o determinismo
da “matéria” e a inventividade finalizada do vivo não são
mais do que casos limites de um continuum infinitamente complexo, redobrado
e semeado de singularidades, a vida e o universo físico, o sinal
e a significação deixam de se opor. Não somente eles
se relacionam um com o outro em sua diferença, mas passam também
um no outro.
O conceito de sistema dinâmico caótico
é um dos que permitem pensar a voluta gigante unindo a vida organizada
às necessidades da physis. Para ilustrar e modelizar este conceito,
Prigogine e Stengers escolheram especialmente a “transformação
do padeiro”, isto é, o estiramento e a redobra indefinidamente reiterada
de uma superfície representando “o espaço das fases de um
sistema”. A operação matemática da transformação
do padeiro é uma espécie de análogo formal do trabalho
que um verdadeiro padeiro aplica a uma massa de pão (ver La nouvelle
alliance, p. 329-43 e 401-407, assim como Entre le temps et l’éternité,
p.96-107). E talvez seja a própria imagem do tempo antes que ele
escoe, antes que ele seja apreendido num sistema de coordenadas: esse movimento
sem fim de estiramento, de dobra e de redobra de uma superfície
abstrata.
A mecanosfera
Dobras não cessam de involuir e de
se recurvar uma nas outras, ao passo que outras se desdobram. Acolhido
na dobra individuante, o sinal, ou a ondulação das coisas,
torna-se significação. Os seres se individuam em torno das
dobras das coisas, da ondulação das paisagens, das curvas
dos corpos, dos arabescos desenhados por alguma linha melódica,
da curvatura dos acontecimentos... Entidades se individuam ou se desindividuam
para que “isso” se preste a outras dobras, para que “isso” se reindividue
de outra maneira. Quer se trate de um objeto cósmico, de uma espécie,
de um biotopos(1), de uma cultura, de um regime político, de um
momento, de uma atmosfera ou de um sujeito, sob qualquer processo de individuação
uma máquina trabalha. (ver “L’hétérogénèse
machinique”, Félix Guattari, Chimères nº. 11, 1991,
retomado em Chaosmose, Galilée, 1992).
A análise redutora acredita ter encontrado
um fundamento da explicação, um último solo causal,
que se confunde freqüentemente com este ou aquele estrato (o “biológico”,
o “psíquico”, o “social”, o “técnico”, etc.). Ora, a análise
preocupada com a singularidade dos seres, em vez de perder tudo (exceto
a certeza), numa regressão a um fundamento, qualquer que seja ele
(ver o pensiere debole enaltecido por Gianni Vattimo), deve ao contrário
tentar fazer aparecer a consistência própria, a dimensão
de autopoiése (Varela), a qualidade ontológica particular
da entidade, do fenômeno ou do acontecimento considerado. É
para escapar à redução que precisamos do conceito
de máquina.
Uma máquina organiza a topologia de
fluxos diversos, desenha os meandros de circuitos rizomáticos. Ela
é uma espécie de atrator que recurva o mundo em volta dela.
Enquanto dobra dobrando ativamente outras dobras, a máquina está
no cerne do retorno do empírico sobre o transcendental. Uma máquina
pode ser considerada numa primeira aproximação como pertencendo
a tal estrato físico, biológico, social, técnico,
semiótico, psíquico, etc., mas ela é mais geralmente
trans-estrática, heterogênea e cosmopolita. As máquinas
são “aquilo através de que” há estratos.
Não somente uma máquina produz
algo num mundo, mas ela contribui para produzir, para reproduzir e para
transformar o mundo no qual ela funciona. Uma máquina é um
agenciamento agenciante, ela tende a se voltar, a retornar sobre suas próprias
condições de existência para re-produzi-las. A composição
das máquinas não é nem conjuntista, nem mecânica,
nem sistêmica. Isso é impossível pois, na perspectiva
neovitalista que é a nossa aqui, cada máquina é animada
por uma subjetividade ou por uma proto-subjetividade elementar. Não
nos representaremos, portanto, máquinas (biológicas, sociais,
técnicas, etc) “objetivas” ou “reais”, e vários “pontos de
vistas subjetivos” sobre esta realidade. Na verdade, uma máquina
puramente “objetiva” que não fosse movida por nenhum desejo, nenhum
projeto, que não fosse infiltrada, animada, alimentada de subjetividade,
não se sustentaria nem um segundo, essa carcaça vazia e seca
se pulverizaria imediatamente. A subjetividade não pode, portanto,
ser restringida ao “ponto de vista” ou à “representação”,
ela é instituinte e realizante. Por outro lado, a subjetividade
não toma forma e só se sustenta com agenciamentos maquínicos
diversos, entre os quais, na escala humana, os agenciamentos biológicos,
simbólicos, mediáticos, sócio-técnicos ocupam
um lugar capital.
As concepções habituais da
composição só respondem na verdade aos problemas da
objetividade pura, cujos modelos sistêmicos, informáticos
e cibernéticos são apenas uma variante elaborada. Mas as
máquinas não são nem puramente objetivas nem puramente
subjetivas. A noção de elemento ou de indivíduo também
não lhes convém mais, nem a de coletivo, uma vez que a coleção
supõe a elementaridade e faz sistema com ela. Como pensar então
a composição das máquinas?
Cada máquina possui uma qualidade
de efecto diferente, uma consistência e um horizonte fabulatório
particular, projeta um universo singular. E no entanto ela entra em composição,
ela se associa com outras máquinas. Mas de que modo? Querer integrar,
unificar violentamente as máquinas plurais sob um só projeto,
um só princípio de consistência, resultaria talvez
em matá-las e certamente diminuir sua riqueza ontológica.
Uma unificação “real” seria destruidora, uma unificação
conceitual empobreceria a compreensão e a inteligência do
fenômeno considerado. Portanto, é necessário respeitar
a pluralidade maquínica, uma pluralidade sem elementos (por baixo)
nem síntese ou totalização (por cima). Mas a pluralidade,
justamente porque ela não é composição de elementos,
não pode ser sinônimo de separação. Há
certamente uma composição ou uma correspondência das
máquinas. Esta articulação paradoxal deverá
ser analisada com infinita delicadeza e precaução em cada
caso particular. Levantamos a hipótese de que não existe
nenhum princípio geral de composição, mas que, pelo
contrário, cada agenciamento maquínico inventa localmente
seu próprio modo de comunicação, de correspondência,
de compossibilidade ou de entrelaçamento da autopoiése (pólo
identitário) e da heteropoiése mútua (pólo
associativo).
Distingamos cinco dimensões da máquina:
1) Uma máquina é diretamente
(como no caso do organismo) ou indiretamente (na maior parte dos casos)
autopoiética (Varela), ou auto-realizadora, (como se diz de uma
profecia auto-realizadora), isto é, ela contribui para fazer durar
o acontecimento da dobra que a faz ser.
2) Uma máquina é exopoiética,
ela contribui para produzir um mundo, universos de significações.
3) Uma máquina é heteropoiética,
ou fabricada e mantida por forças do fora, pois ela se constitui
de uma dobra. O exterior já está aí presente sempre,
ao mesmo tempo geneticamente e atualmente.
4) Uma máquina é não
somente constituída pelo exterior (é a redobra da dobra).
A máquina se alimenta, recebe mensagens, está atravessada
por fluxos diversos. Em suma, a máquina é desejante. A este
respeito todos os agenciamentos, todas as conexões são possíveis
de uma máquina à outra.
5) Uma máquina é interfaciante
e interfaciada. Ela traduz, trái, desdobra e redobra para uma máquina
jusante os fluxos produzidos por uma máquina montante. Ela é
ao mesmo tempo composta por máquinas tradutoras que a dividem, multiplicam
e heterogenizam. A interface é a dimensão de “política
estrangeira” da máquina, o que pode fazé-la entrar em novas
redes, fazê-las traduzir novos fluxos.
Toda máquina possui as cinco dimensões,
mas em graus e proporções variáveis. Repitâmo-lo,
as máquinas nunca são puramente físicas, biológicas,
sociais, técnicas, psíquicas, semióticas, etc. Cosmópolis
atravessa sempre as dobras transitórias que escavam estas distinções.
Certas máquinas estratificantes ou territorializantes - elas próprias
perfeitamente heterogêneas - trabalham precisamente para endurecer
as dobras estráticas. São redes de máquinas cosmopolitas
que produzem os seres, os modos de ser, o próprio Ser de acordo
com uma modulação infinita de graus e qualidades.
A produtividade ontológica se auto-entretém,
pois máquinas interfaces, parasitas, vêm gerar os hiatos,
os abismos ou as dobras demasiado profundas que separam as subjetividades-mundos,
suas temporalidades, seus espaços e seus signos. Uma máquina
mantém presente (traindo-o ao mesmo tempo) o acontecimento da dobra
do qual ela resulta. Ela inscreve o clinâmen inicial na mecanosfera,
faz com que ele dure, retorne e, ao fazê-lo, ela se instaura como
fonte de outras dobras.
Pensando como mecanosfera, todo o mundo empírico
retorna sobre o transcendental, torna-se fonte multiforme e plurívoca
de universo de existência e de significação.
Os três andares do transcendental
Partimos de uma concepção clássica
do transcendental: a interioridade do sujeito, ou o objeto, ou a experiência,
etc. Pouco a pouco, é a dobra do ser e do ente (ver Heidegger, Essais
et conférences, Gallimard, p. 279-310) ou do transcendental e do
empírico que se impôs à nossa meditação.
Devemos agora remontar à própria possibilidade das dobras
(e não somente da dobra heideggeriana ser/ente). Distingamos para
este fim três níveis de transcendental.
O transcendental de nível zero: Há
inicialmente o “isso”, o inconsciente total intotalizável, o plano
de consistência. As entidades que povoam esse arqui-lugar ou esse
proto-tempo estão em composição e decomposição
perpétuas e simultâneas. Elas se deslocam a uma velocidade
absoluta e estão ao mesmo tempo infinitamente próximas e
infinitamente distanciadas umas das outras. Evidentemente será preciso
ter cuidado para distinguir o caos transcendental da desordem no sentido
habitual ou termodinâmico do termo... antes de meditar a dobra que
relaciona uns com outros estes sentidos. (Ver, para uma exposição
mais detalhada sobre o caos, as Cartographies schizoanalytiques de Félix
Guattari). O caos transcendental é a condição de possibilidade
da dobra como acontecimento.
O transcendental de nível um: O acontecimento
da dobra é aquilo pelo qual algo se diferencia. A dobra é
trabalho antes de qualquer objeto ou qualquer fluxo trabalhado, processo
antes de qualquer estado, incoativo absoluto. A dobra é uma espécie
de inflexão do plano de consistência, um clinâmen.
O transcendental de nível dois: São
os complexos maquínicos dobrados/dobrantes que produzem os mundos
empíricos. Sob o ser e o nada, o ser e os entes, os universos biológicos,
sociais; seus modos de enunciação e suas significações
trabalham agenciamentos trans-estráticos, máquinas cosmopolitas
heterogêneas que se entre-traduzem, se entre-produzem e se entre-destroem
perpetuamente. O transcendental de nível dois é o coletivo
em metamorfose permanente do todos os “aquilo através de que”. A
organização “hipertextual” (ver Pierre Lévy, Les technologies
de l’inteligence, Points-Seuil, 1993 (2)) da rede maquínica proíbe
qualquer redução a uma infraestrutura, qualquer rebatimento
do trans-mundo sobre uma ordem particular de discurso. Eis aqui a mecanosfera,
a mega-máquina mundo-mundo, o anel de Moebius cósmico onde
empírico e transcendental trocam perpetuamente seus lugares ao longo
de uma dobra única e infinitamente complicada.
Direções de pesquisas: ética
e semiótica
A ontologia do plissê fractal poderia
prolongar-se em duas direções. Primeiramente para uma filosofia
da significação. Pois todo signo é dobra, a forma
mais simples da dobra significante sendo o desdobramento significado/significante,
que se pode complicar, segundo Hjelmslev, em expressão e conteúdo,
cada um destes dois termos se subdividindo ainda em forma e matéria.
Mas o signo pode se dobrar de mil modos (apenas Peirce recenseou mais de
sessenta tipos de signos). É o mesmo que dizer, com Félix
Guattari, que existem tantas semióticas (estilos de dobras significantes)
quantos agenciamentos de enunciação. Músicas, cidades,
rituais, tatuagens, signos plásticos ou cinematográficos,
imagens infinitamente difratadas da rede mediática, máquinas
de escrita em abismo dos softwares, imaginários pluri-semióticos
em ato, universos existenciais... a dobra simples do significante e do
significado só aparece, então, como um caso-limite bastante
pobre.
Só evocamos aqui, por enquanto, a
estática do signo, sua estrutura. Qual é o trabalho da significação
como ato? Como pensar o redobramento/desdobramento de afectos, de imagens
e de representações produzido pelo acontecimento do signo
no grande drapê fractal da memória e, mais além, ao
longo das alternâncias de dentro e de fora interfaciadas da mecanosfera?
Quais são as máquinas heterogêneas que trabalham para
manter o estrato semiótico como tal e através de que o signo
se relaciona sempre já com o a-significante, se confunde com os
processos cosmopolitas?
Enfim, a ontologia da dobra desemboca numa
ética, ou numa política. Se o empírico volta ao transcendental,
os cabalistas tinham razão: é no mundo de baixo que se decide
em último lugar a sorte do mundo de cima. Não somos somente
destinados pelo desvelamento historial, como o pretendia Heidegger, somos
também responsáveis (no sentido mais forte do termo) por
ele. Agindo efetiva ou empiricamente, fazemos emergir um horizonte de sentido
historial, um imaginário instituinte, um universo existencial ou
incorporal. Temos certamente que responder pelas conseqüências
materiais de nossos atos, mas também pelas matrizes de significações
que ajudamos a transmitir, consolidar, edificar e destruir. Não
entendamos esta relação essencial da ética com a significação
num sentido estreito. Não se trata unicamente de lembrar o papel
primordial dos escritores, dos artistas, dos homens de “comunicação”
e, em geral, de todos os que trabalham explicitamente no campo semiótico.
Os atos “puramente práticos”, técnicos, administrativos,
econômicos e outros contribuem tanto quanto os atos de discurso para
a construção dos agenciamentos coletivos de enunciação,
para a produção das qualidades de ser. A ética e a
política não concernem apenas às relações
dos humanos entre eles, à relação com o “próximo”,
mas igualmente à relação com o mundo. Que mundo ajudamos
a inventar e a fazer existir?
Esta interrogação fundamental
pode desdobrar-se em três questões ético-políticas
particulares.
Em primeiro lugar, enquanto cidadãos
do mundo total, que é feito de nossa responsabilidade para com a
Terra, seus oceanos, suas florestas, suas massas humanas e seus climas?
Em que planeta queremos viver?
Em segundo lugar, enquanto fontes de mundos
particulares, de que modo agimos para com os outros mundos, produtos de
formas de vida, de cultura, de significações e de subjetividade
diferentes? Que tipos de relações estabelecemos com modos
de ser que não são os nossos (mas com os quais estamos, no
entanto, sempre em relação pelas redobras de nossa participação
com a mecanosfera)?
Em terceiro lugar, que atitude fundamental
adotamos para com o trans-mundo? Mantemos livre a possibilidade de emergência
de novos agenciamentos de enunciação? Favorecemos ou, ao
contrário, restringimos a produtividade ontológica? Mantemos
as dobras em sua essência de acontecimento, ou trabalhamos para endurecê-las
em oposições, estratos, substâncias? Escolhemos as
individuações sempre capazes de receber novas dobras ou as
individualizações rígidas e fechadas?
A ética se relaciona com o mundo sob
estas três faces: a Terra, os outros mundos (o próximo é
apenas um caso particular de outro mundo), e o trans-mundo das dobras,
dos agenciamentos de enunciação e dos processos cosmopolitas.
Três figuras do anel imanência-transcendência que não
cessa de destruir, de metamorfosear e de produzir o ser em sua infinita
diversidade.
Tradução de Soraya Oliveira
Revisão de Rogério da Costa
e Arthur Hyppólito de Moura
1) “biotope” no original: “Meio biológico
determinado que oferece a uma população animal e vegetal
bem determinada condições de habitat relativamente estáveis”.
Dic Petit Robert
2) As Tecnologias da Inteligência. Rio de
Janeiro, 34 Letras, 1993
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