A cada minuto
que passa, novas pessoas assinam a Internet, novos computadores se interconectam,
novas informações são injetadas na rede. Quanto mais
o ciberespaço se estende, mais universal se torna, menos totalizável
o mundo informacional se torna. O universal da cybercultura está
tão desprovido de centro como de linha diretriz. Está vazio,
sem conteúdo. Ou melhor, aceita todos, pois contenta-se com pôr
em contato um ponto qualquer com qualquer outro, qualquer que seja a carga
semântica das entidades postas em relação. Eu não
quero dizer com isso que a universalidade do ciberespaço seja «neutra»
ou sem conseqüências, pois o fato-mor do processo de interconexão
geral já tem e terá ainda mais, no futuro, imensas repercussões
na vida econômica, política e cultural. Esse evento está
efetivamente transformando as condições da vida em sociedade.
Trata-se, no entanto, de um universal indeterminado e que tende até
a manter sua indeterminação, pois cada novo nó da
rede de redes em constante extensão pode tornar-se produtor ou emissor
de informações novas, imprevisíveis, e reorganizar
por conta própria parte da conectividade global.
O ciberespaço possui
o caráter de sistema dos sistemas mas, por isso mesmo, também
é o sistema do caos. Máxima encarnação da transparência
técnica, acolhe, no entanto, devido à sua irreprimível
profusão, todas as opacidades do sentido. Desenha e redesenha a
figura de um labirinto móvel, em extensão, sem plano possível,
universal, um labirinto com o qual o próprio Dédalo não
poderia ter sonhado. Essa universalidade desprovida de significado central,
esse sistema da desordem, essa transparência labiríntica,
eu a chamo o «universal sem totalidade». Constitui a essência
paradoxal da cybercultura.
A escrita e o universal totalizante
Para entender bem a
mutação da civilização contemporânea,
é preciso fazer um retorno reflexivo sobre a primeira grande transformação
na ecologia das mídias: a passagem das culturas orais para as culturas
da escrita. A emergência do ciberespaço terá provavelmente
já tem hoje até um efeito tão radical sobre a
pragmática das comunicações como o teve em seu tempo
a invenção da escrita.
Nas sociedades orais, as
mensagens lingüísticas sempre eram recebidas no momento e no
local de sua emissão. Emissores e receptores partilhavam uma situação
idêntica e, na maioria das vezes, um universo semelhante de significado.
Os atores da comunicação mergulhavam no mesmo banho semântico,
no mesmo contexto, no mesmo fluxo vivo de interação.
A escrita abriu um espaço
de comunicação desconhecido pelas sociedades orais, no qual
tornava-se possível tomar conhecimento de mensagens geradas por
pessoas situadas a milhares de quilômetros ou mortas desde séculos,
ou expressando-se desde enormes distâncias culturais ou sociais.
Assim sendo, os atores da comunicação não partilhavam
necessariamente a mesma situação, não estavam mais
em interação direta.
Subsistindo fora de seus
condições de emissão e recepção, as
mensagens escritas mantêm-se "fora de contexto". Esse "fora de contexto"
que inicialmente se insere apenas na ecologia das mídias e na
pragmática da comunicação foi legitimado, sublimado,
interiorizado pela cultura. Tornar-se-á o núcleo de uma certa
racionalidade e acabará levando à noção de
universalidade.
É difícil entender
uma mensagem quando separada de seu contexto vivo de produção.
É por isso que, ao lado da recepção, inventaram-se
as artes da interpretação, da tradução, toda
uma tecnologia lingüística (gramáticas, dicionários
).
Do lado da emissão, houve um esforço para compor mensagens
que fossem capazes de circular por toda a parte, independentemente de suas
condições de produção, as quais contêm
em si, na medida do possível, suas chaves de interpretação
ou sua "razão". A esse esforço prático corresponde
a Idéia do Universal. Em princípio, não há
a necessidade de recorrer a um testemunho vivo, a uma autoridade externa,
a hábitos ou a elementos de um determinado ambiente cultural, para
compreender e admitir as proposições enunciadas nos Elementos
de Euclides. Esse texto inclui em si as definições e os axiomas
a partir dos quais decorrem necessariamente os teoremas. Os Elementos são
um dos melhores exemplos do tipo de mensagem auto-suficiente, auto-explicativa,
englobando suas próprias razões, que não teria pertinência
alguma numa sociedade oral.
Cada uma à sua maneira,
a filosofia e a ciência clássicas almejam a universalidade.
Eu formulo a hipótese de que é porque elas não podem
ser separadas do dispositivo de comunicação instaurado pela
escrita. As religiões "universais" (não estou falando apenas
dos monoteísmos: pensemos no Budismo) são todas elas apoiadas
em textos. Se eu quiser converter-me ao Islamismo, posso fazê-lo
em Paris, em Nova Iorque ou na Meca. Mas se eu quiser praticar a religião
bororo (supondo-se que esse projeto tenha um sentido), não tenho
outra solução que não ir viver com os bororos. Os
rituais, os mitos, as crenças e os modos de vida bororo não
são "universais", mas sim contextuais ou locais. De maneira alguma
apóiam-se numa relação com os textos escritos. Evidentemente,
essa constatação não implica nenhum julgamento de
valor etnocêntrico: um mito bororo pertence ao patrimônio da
humanidade e pode virtualmente comover qualquer ser pensante. Por outro
lado, religiões particularistas também têm seus textos
a escrita não determina automaticamente o universal, ela o condiciona
(não há universalidade sem escrita).
Assim como os textos científicos
ou filosóficos que supostamente contêm suas próprias
razões, seus próprios fundamentos e trazem consigo suas condições
de interpretação, os grandes textos das religiões
universalistas englobam por construção a fonte de sua autoridade.
Com efeito, a origem da verdade religiosa é a revelação.
Ora, a Tora, os Evangelhos, o Alcorão são a própria
revelação ou o relato autêntico da revelação.
O discurso não está mais no fio de uma tradição
cuja autoridade vem do passado, dos ancestrais ou da evidência partilhada
de uma cultura. Somente o texto (a revelação) fundamenta
a verdade, fugindo, assim, de qualquer contexto condicionante. Graças
ao regime de verdade que se apóia num texto-revelação,
as religiões do livro libertam-se da dependência de um meio
particular e tornam-se universais.
Observemos, de passagem,
que o «autor» (típico das culturas escritas) é,
originalmente, a fonte da autoridade, enquanto o que o «intérprete»
(figura central das tradições orais) faz é apenas
atualizar ou modular uma autoridade que vem de outro lugar. Graças
à escrita, os autores, demiúrgicos, inventam a autoposição
do verdadeiro.
No universal fundamentado
pela escrita, o que deve manter-se inalterado pelas interpretações,
traduções, translações, difusões, conservações,
é o sentido. O significado da mensagem deve ser o mesmo aqui e acolá,
hoje e outrora. Esse universal é indissociável de um alcance
de fechamento semântico. Seu esforço de totalização
luta contra a pluralidade aberta dos contextos atravessados pelas mensagens,
contra a diversidade das comunidades que os fazem circular. Da invenção
da escrita decorrem as exigências muito especiais da descontextualização
dos discursos. Desde esse evento, o domínio englobante do significado,
a pretensão do "tudo", a tentativa de instaurar o mesmo sentido
(ou, para a ciência, a mesma exatidão) em cada lugar está,
para nós, associado ao universal.
Meios de comunicação
de massa e totalidade
Os meios de comunicação
de massa (imprensa, rádio, cinema, televisão) seguem, ao
menos em sua configuração clássica, a linha cultural
do universal totalizante iniciada pela escrita. Dado que a mensagem mediática
será lida, ouvida, vista por milhares ou milhões de pessoas
mundo afora, é composta de maneira que encontre o «denominador
comum» mental de seus destinatários. Seu alvo são os
receptores, no mínimo, de sua capacidade interpretativa. Não
cabe desenvolver aqui tudo quanto distingue os efeitos culturais da mídia
eletrônica dos da prensa. Só queria ressaltar uma semelhança.
Por circular num espaço desprovido de interação, a
mensagem mediática não pode explorar o contexto particular
que envolve o receptor, ignora sua singularidade, suas aderências
sociais, sua microcultura, seu momento e sua situação especial.
Tal dispositivo, ao mesmo tempo redutor e conquistador, é que fabrica
o "público" indiferenciado, a "massa" dos meios de comunicação
de massa. Universalizante por vocação, a mídia totaliza
de maneira frouxa sobre o atrativo emocional e cognitivo mais baixo, para
o «espetáculo» contemporâneo, ou de maneira muito
mais violenta, sobre a propaganda do partido único, para os totalitarismos
clássicos do século XX: fascismo, nazismo e estalinismo.
A mídia eletrônica, por exemplo, o rádio ou a televisão,
trazem uma segunda tendência, complementar da primeira. Paradoxalmente,
a descontextualização que eu acabo de mencionar estabelece
outro contexto, holístico, quase que tribal, porém numa escala
maior do que nas sociedades orais. Interagindo com os outros meios de comunicação,
a televisão traz à tona um plano emocional de existência
que reúne os membros da sociedade numa espécie de macrocontexto
flutuante, sem memória e de rápida evolução.
Percebe-se isso mais especialmente nos fenômenos do "ao vivo" e em
geral quando a «atualidade» se torna quente. É
preciso reconhecer a McLuhan o fato de ter sido o primeiro a descrever
esse caráter das sociedades mediáticas. A principal diferença
entre o contexto mediático e o contexto oral é que os telespectadores,
embora emocionalmente implicados na esfera do espetáculo, jamais
podem sê-lo praticamente. Por construção e no plano
mediático de existência, jamais são atores.
A verdadeira ruptura com
a pragmática da comunicação estabelecida pela escrita
não pode vir à luz com o rádio ou a televisão,
pois esses instrumentos de difusão em massa não permitem
nenhuma verdadeira reciprocidade, tampouco interações transversais
entre os participantes. Em vez de emergir das interações
vivas de uma ou mais comunidades, o contexto global instaurado pela mídia
fica fora do alcance dos que consomem apenas sua recepção
passiva, isolada.
Complexidade dos modos de
totalização
Muitas formas culturais derivadas
da escrita têm a universalidade por vocação; porém,
cada uma totaliza com base num atrativo diferente: as religiões
universais sobre o sentido, a filosofia (inclusive a filosofia política)
sobre a razão, a ciência sobre a exatidão reprodutível
(os fatos), a mídia sobre uma captação num espetáculo
siderante batizado como "comunicação". Em todos os casos,
a totalização opera-se sobre a identidade do significado.
Cada uma à sua maneira, essas máquinas culturais procuram
reproduzir, no plano de realidade que inventam, uma sorte de coincidência
com eles mesmos dos coletivos que reúnem. O Universal? Uma espécie
de aqui e agora virtual da humanidade. Ora, embora desemboquem numa reunião
por um aspecto de sua ação, tais máquinas de produzir
o universal decompõem, por outro lado, uma multidão de micrototalidades
contextuais: paganismos, opiniões, tradições, saberes
empíricos, transmissões comunitárias e artesanais.
Por sua vez, essas destruições de local são imperfeitas,
ambíguas, pois por contragolpe os produtos das máquinas universais
são fagocitados, relocalizados, misturados aos particularismos que
eles gostariam de transcender. Embora o universal e a totalização
(a totalização, isto é, o fechamento semântico,
a unidade da razão, a redução do denominador comum,
etc.) tenham sempre estado ligados, sua conjunção oculta
fortes tensões, dolorosas contradições que talvez
a nova ecologia da mídia polarizada pelo ciberespaço permita
desvelar. Essa resolução, digamô-lo com força,
não está em absoluto garantida, nem é automática.
A ecologia das técnicas de comunicação propõe,
os atores humanos dispõem. Eles são quem decide em última
instância, deliberadamente ou na semi-inconsciência dos efeitos
coletivos, do universal cultural que juntos estão construindo. E,
para isso, devem ter percebido a possibilidade de novas escolhas.
A cybercultura ou o universal
sem totalidade
Com efeito, o maior evento
cultural anunciado pela emergência do ciberespaço é
o desatrelamento entre esses dois operadores sociais ou máquinas
abstratas (muito mais do que conceitos!) que a universalidade e a totalização
são. A causa é simples: o ciberespaço dissolve a pragmática
de comunicação que, desde a invenção da escrita,
havia conjuntado o universal e a totalidade. Com efeito, leva-nos de volta
a essa situação anterior a escrita porém, numa outra
escala e em outra órbita na medida em que a interconexão
e o dinamismo em tempo real das memórias em linha faz os parceiros
da comunicação partilharem novamente o mesmo contexto, o
mesmo imenso hipertexto vivo. Qualquer que seja a mensagem abordada, ela
está conectada com outras mensagens, com comentários, com
gloses em constante evolução, com pessoas que se interessam
por elas, com os fóruns onde são debatidas, aqui e agora.
Qualquer texto é o fragmento que se ignora talvez do hipertexto
móvel que o envelopa, que o conecta com outros textos e serve como
mediador ou meio para uma comunicação recíproca, interativa,
ininterrupta. Sob o regime clássico da escrita, o leitor está
condenado a reatualizar dispendiosamente o contexto, ou então a
aceitar o trabalho das Igrejas, das instituições ou Escolas,
obstinadas a ressuscitar e fechar o sentido. Hoje, porém, tecnicamente
e devido à iminente colocação em rede de todas as
máquinas do planeta, quase não existem mais mensagens "fora
de contexto", separadas de uma comunidade ativa. Virtualmente, todas as
mensagens mergulham num banho comunicacional borbulhante de vida, incluindo
as próprias pessoas, e do qual o ciberespaço vai progressivamente
sendo o coração.
Os correios, o telefone,
a imprensa, as editoras, as rádios, as incontáveis redes
de televisão formam doravante a franja imperfeita, os apêndices
parciais e diferentes, todos eles de um espaço de interconexão
aberto, animado por comunicações transversais, caótico,
turbilhonante, fractal, movido por processos magmáticos de inteligência
coletiva. É verdade que jamais nos banhamos duas vezes no mesmo
rio informacional, mas a densidade dos vínculos e a velocidade das
circulações são tais que os atores da comunicações
não sentem mais nenhuma grande dificuldade para partilhar o mesmo
contexto, ainda que essa situação seja algo movediça
e ocasionalmente confusa.
Utopia minimal e motor primário
do crescimento da Internet, a interconexão generalizada emerge como
forma nova do Universal. Atenção! O processo de interconexão
mundial em curso realiza mesmo uma forma do Universal, mas essa não
é a mesma do que com a escrita estática. Aqui, o Universal
deixa de articular-se no fechamento semântico chamado pela descontextualização.
Muito pelo contrário. Esse Universal não totaliza mais o
sentido, mas sim liga pelo contato, pela interação geral.
O Universal não é
o planetário
Dir-se-á, talvez,
que não se trata propriamente do Universal, mas do planetário,
do fato geográfico bruto, da extensão das redes de transporte
material e informacional, da constatação técnica do
crescimento exponencial do ciberespaço. Pior ainda, sob o pretexto
de universal, não se tratará apenas do puro e simples "global,
o da "globalização" da economia ou dos mercados financeiros?
Está certo que esse novo Universal contém uma alta dose de
global e planetário, mas ele não se limita a isso. O «Universal
por contato» ainda é universal, no sentido mais profundo,
pois ele é indissociável da idéia de humanidade. Até
os mais ferrenhos desprezadores do ciberespaço rendem homenagem
a essa dimensão quando eles lamentam, com razão, que a maioria
esteja excluída ou que a África ocupe tão pouco lugar
nele. O que é que a reivindicação do "acesso para
todos" revela? Mostra que a participação nesse espaço
que lega cada ser humano com qualquer outro, que pode fazer as comunidades
comunicarem-se entre si e consigo, que suprime os monopólios de
difusão e autoriza cada um a emitir para quem estiver interessado
ou implicado, esse reivindicação revela que a participação
nesse espaço funda-se num direito e que sua construção
se aparenta com uma espécie de imperativo moral.
Em suma, a cybercultura dá
forma a uma nova espécie de Universal: o Universal sem totalidade.
E, repetimos, ainda se trata de Universal, acompanhado de todas as ressonâncias
que se quiser com a filosofia das luzes, por ele manter uma profunda relação
com a idéia de humanidade. O ciberespaço, com efeito, não
gera uma cultura do Universal por estar de fato em toda a parte, mas sim
porque sua forma ou idéia implica direito à totalidade dos
seres humanos.
Quanto mais universal, menos
totalizável
Por intermédio dos
computadores e das redes, as pessoas mais diversas podem entrar em contato,
apertar a mão no mundo inteiro. Antes do que se construir sobre
a identidade do sentido, o novo universo prova-se por imersão. Estamos
todos no mesmo banho, no mesmo dilúvio de comunicação.
Ou seja, não é mais uma questão de fechamento semântico
ou de totalização.
Uma nova ecologia dos meios
de comunicação está organizando-se em torno da extensão
do ciberespaço. Posso agora enunciar seu paradoxo central: quanto
mais universal (extenso, interconectado, interativo), menos totalizável.
Cada conexão suplementar acrescenta mais heterogeneidade, novas
fontes de informação, novas linhas de fuga, de maneira que
o sentido global fica cada vez menos legível, cada vez mais difícil
de circunscrever, de encerrar, de dominar. Esse Universal dá acesso
a um gozo do mundial, à inteligência coletiva em ato da espécie.
Faz-nos participar mais intensamente da humanidade viva, mas sem que isso
seja contraditório, ao contrário, com a multiplicação
das singularidades e a ascensão da desordem.
De novo: quanto mais o Universal
se concretizar ou se atualizar, menos totalizável fica. Existe a
tentação de dizer que se trata, enfim, do verdadeiro Universal,
pois ele não se confunde mais com uma dilatação de
local, e, tampouco, com a exportação forçada dos produtos
de uma determinada cultura. Anarquia? Desordem? Não. Tais palavras
refletem apenas a nostalgia do fechamento. Aceitar perder uma certa forma
de domínio, é dar-se uma chance de encontrar o real. O ciberespaço
não está desordenado, mas exprime a diversidade do humano.
Que seja necessário inventar os mapas e os instrumentos de navegação
desse novo oceano, sobre isso cada um pode concordar. Não é
necessário, porém, fixar, estruturar a priori ,engessar uma
paisagem fluida e variada por natureza, uma vontade excessiva de domínio
não prende o ciberespaço de maneira durável. As tentativas
de fechamento tornam-se quase impossíveis ou por demais evidentemente
abusivas.
Por que inventar um «Universal
sem totalidade», quando já dispomos do rico conceito de pós-modernidade?
É que, precisamente, não se trata da mesma coisa. A filosofia
pós-moderna descreveu bem a dispersão da totalização.
A fábula do progresso linear e garantida não tem mais vigência,
nem na arte, nem na política, nem em campo algum. Ao não
haver mais »um» sentido da história, mas sim uma multidão
de pequenas proposições que lutam pela sua legitimidade,
como organizar a coerência dos eventos, em que tudo é «a
vanguarda»? Quem é que está «na frente»?
Quem é que é «progressista»? Em três palavras,
e para retomar a feliz expressão de Lyotard, a pós-modernidade
proclama o fim dos «grandes relatos» totalizantes. A multiplicidade
e o emaranhamento radical das épocas, dos pontos de vista e das
legitimidades, traço distintivo do pós-moderno, vê-se
claramente acentuada e encorajada, aliás, na cybercultura. Mas a
filosofia pós-moderna tem confundido o Universal e a totalização.
Seu erro foi o de jogar o bebê do Universal junto com a água
suja da totalidade.
O que é o Universal?
É a presença (virtual) para si da humanidade. Quanto à
totalidade, podemos defini-la como o agrupamento estabilizado do sentido
de uma pluralidade (discurso, situação, conjunto de eventos,
etc.). Essa identidade global pode encerrar-se no horizonte de um processo
complexo, resultar do desequilíbrio dinâmico da vida, emergir
das oscilações e contradições do pensamento.
Mas qualquer que seja a complexidade de suas modalidades, a totalidade
ainda continua abaixo do horizonte do mesmo.
Ora, a cybercultura mostra
precisamente que existe outra maneira de instaurar a presença virtual
para si da humanidade (o Universal) que não pela identidade do sentido
(a totalidade).
Estará a cybercultura
em ruptura com os valores fundadores da modernidade européia?
Em contraste com a idéia
pós-moderna do declínio das idéias das luzes, afirmo
que a cybercultura pode ser considerada como herdeira legítima (embora
distante) do projeto progressista dos filósofos do século
XVIII. Com efeito, ela valoriza a participação em comunidades
de debate e argumentação. Na linha direta das morais da igualdade,
ela incentiva uma maneira de reciprocidade essencial nas relações
humanas. Desenvolveu-se a partir de uma prática assídua dos
intercâmbios de informações e conhecimentos, que os
filósofos das luzes consideravam como o principal motor do progresso.
E, se alguma vez tivéssemos sido modernos (1), a cybercultura não
seria pós-moderna, mas estaria realmente na continuidade dos ideais
revolucionários e republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade.
Só que, na cybercultura, tais "valores" encarnam-se em dispositivos
técnicos concretos. Na era da mídia eletrônica, a igualdade
se realiza em possibilidade para cada um emitir para todos; a liberdade
se objetiva em softwares de codificação e em acesso transfronteiriço
para múltiplas comunidades virtuais; a fraternidade, quanto a ela,
se converte em interconexão mundial.
Assim, longe de ser resolutamente
pós-moderno, o ciberespaço pode aparecer como uma espécie
de materialização técnica dos ideais modernos. Em
particular, a evolução contemporânea da informática
constitui uma surpreendente realização do objetivo marxista
de apropriação dos meios de produção pelos
próprios produtores. Hoje em dia, a "produção" consiste
essencialmente em simular, processar informação, em criar
e divulgar mensagens, em adquirir e transmitir conhecimentos, em coordenar-se
em tempo real. Assim sendo, os computadores pessoais e as redes numéricas
colocam efetivamente nas mãos dos indivíduos as principais
ferramentas da atividade econômica. Mais ainda, se o espetáculo
(o sistema mediático), de acordo com os situacionistas, é
o máximo da dominação capitalista (2), o ciberespaço
então está realizando uma verdadeira revolução,
pois permite ou permitirá, em breve a cada um dispensar o editor,
o produtor, o transmissor, os intermediários em geral, para dar
a conhecer seus textos, sua música, seu mundo virtual ou qualquer
outro produto de sua mente. Em contraste com a impossibilidade de responder
e o isolamento dos consumidores de televisão, o ciberespaço
oferece as condições de uma comunicação direta,
interativa e coletiva.
A realização
quase técnica dos ideais da modernidade coloca imediatamente em
evidência seu caráter, não irrisório, mas parcial,
insuficiente. Pois está claro que nem a informática pessoal,
nem o ciberespaço, por mais generalizada que seja a totalidade dos
seres humanos, resolvem com sua mera existência os principais problemas
de vida em sociedade. É verdade que realizam praticamente formas
novas de universalidade, de fraternidade, de estar juntos, de reapropriação
pela base dos instrumentos de produção e comunicação.
Mas, no mesmo movimento, desestabilizam, em alta velocidade e freqüentemente
de maneira violenta, as economias e as sociedades. Ao mesmo tempo em que
arruinam os antigos, participam da criação de novos poderes,
menos visíveis e mais instáveis, mas nem por isso menos virulentos.
A cybercultura aparece como
a solução parcial de problemas da época anterior,
embora constitua, por sua vez, um imenso campo de problemas e conflitos
para os quais não se está desenhando ainda nenhuma perspectiva
de resolução global. A relação com o saber,
o trabalho e o emprego amoedam a democracia, o Estado precisa ser reinventado,
para citarmos apenas algumas das formas sociais mais brutalmente questionadas.
Num sentido, a cybercultura
perpetua a grande tradição da cultura européia. Noutro,
ela transmuda o conceito de cultura.
A cybercultura ou a tradição
simultânea
Longe de ser uma subcultura
dos fanáticos da rede, a cybercultura exprime uma grande mutação
da própria essência da cultura. Conforme a tese que desenvolvi
neste relatório, a chave da cultura do futuro é o conceito
de Universal sem totalidade. Nessa proposição, «o Universal»
significa a presença virtual da humanidade para si. O Universal
abriga o aqui e agora da espécie, seu ponto de encontro, um aqui
e agora paradoxal, sem lugar nem tempo claramente atribuível. Por
exemplo, uma religião universal dirige-se supostamente a todos os
homens e os reúne virtualmente em sua revelação, sua
escatologia, seus valores. Da mesma maneira, a ciência exprime supostamente
(e vale por) o progresso intelectual da totalidade sem homens, sem exclusão.
Os cientistas são os delegados da espécie e os triunfos do
conhecimento exato são os da humanidade em seu conjunto. Da mesma
maneira, o horizonte de um ciberespaço que consideramos universalista
é o de interconectar todos os bípedes falantes e fazê-los
participar da inteligência coletiva da espécie no seio de
um meio onipresente. De maneira totalmente diferente, a ciência e
as religiões universais abrem lugares virtuais onde a humanidade
encontra a si mesma. Embora exercendo uma função análoga,
o ciberespaço reúne as pessoas de maneira muito menos «virtual»
do que a ciência ou as grandes religiões. A atividade científica
implica cada um e dirige-se a todos pelo intermédio de um sujeito
transcendental do conhecimento, no qual cada membro da espécie participa.
A religião agrupa por transcendência. Para sua operação
em que põe o homem em presença de si, ao contrário,
o ciberespaço lança mão de uma tecnologia real, imanente,
ao alcance da mão.
Agora, o que é a totalidade?
Trata-se, na minha linguagem, da unidade estabilizada do sentido de uma
diversidade. Quer essa unidade ou identidade seja orgânica, dialética,
ou complexa, antes do que simples ou mecânica, não muda em
nada a questão; trata-se ainda de totalidade, isto é, de
um fechamento semântico englobante. Ora, a cybercultura inventa outra
maneira de fazer advir a presença virtual para si do humano somente
impondo uma unidade do sentido. Essa é a principal tese defendida
aqui.
À luz das categorias
que acabo de expor, podemos distinguir três grandes etapas da história:
a das pequenas sociedades
fechadas, de cultura oral, que viviam uma totalidade sem Universal;
a das sociedades «civilizadas»,
imperiais, que usam a escrita, que fizeram surgir um Universal totalizante
e,
por fim, a da cybercultura,
que corresponde à mundialização concreta das sociedades,
que inventa um Universal sem totalidade.
Ressaltemos que os estágios
dois e três não fazem desaparecer os que os antecedem, mas
relativizam-nos ao acrescentar dimensões suplementares.
Numa primeira época,
a humanidade é composta de uma multidão de totalidades culturais
dinâmicas ou de «tradições», mentalmente
fechadas sobre si, o que evidentemente não impede nem os encontros,
nem as influências. «Os homens» por excelência
são os membros da tribo. São raras as proposições
das culturas arcaicas que supostamente concernem a todos os seres humanos
sem exceção. Nem as leis (nenhum «direito humano»),
nem os deuses (nenhuma religião universal), nem os conhecimentos
(nenhum procedimento de experimentação ou raciocínio
reprodutível em toda a parte), nem as técnicas (nenhuma rede,
nem padrões mundiais) são universais por construção.
É verdade que o registro
estava ausente. Mas a transmissão cíclica de geração
para geração garantia a perenidade no tempo. As capacidades
da memória humana limitavam, no entanto, o tamanho do tesouro cultural
às lembranças e aos saberes de um grupo de idosos. Totalidades
vivas, porém fechadas, sem Universal.
Numa segunda época,
«civilizada», as condições de comunicação
instauradas pela escrita levam à descoberta prática da universalidade.
A escrita, a seguir o impresso, trazem uma possibilidade de extensão
indefinida da memória social. A abertura universalista efetua-se
paralelamente no tempo e no espaço. O Universal totalizante traduz
a inflação dos sinais e a fixação do sentido,
a conquista dos territórios e a sujeição dos homens.
O primeiro Universal é imperial, estatal. Impõe-se sobre
a diversidade das culturas. Tende a cavar uma camada do ser em toda a parte
e sempre idêntica, pretensamente independente de nós (assim
como o universo criado pela ciência) ou apegada a tal definição
abstrata (os direitos humanos). Sim, nossa espécie existirá
futuramente como tal. Encontra-se, comunga dentro de estranhos espaços
virtuais: a revelação, o fim dos tempos, a razão,
a ciência, o direito
Do Estado às religiões do livro,
das religiões às redes da tecnociência, a universalidade
afirma-se e corporifica-se, porém, quase sempre pela totalização,
pela extensão e pela manutenção de um sentido único.
Ora, a cybercultura, terceiro
estágio da evolução, mantém a universalidade
ao mesmo tempo em que dissolve a totalidade. Corresponde ao momento em
que nossa espécie, com a planetarização econômica,
com a densificação das redes de comunicação
e transporte, tende a formar apenas uma comunidade mundial, mesmo que essa
comunidade seja e como é! desigual e conflituosa. Única
de seu gênero no reino animal, a humanidade reúne toda a sua
espécie numa única sociedade. Mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente,
a unidade do sentido surge, talvez porque começa a realizar-se praticamente,
pelo contato e pela interação efetiva. Noé está
voltando feito multidão. Flotilhas espalhadas e dançantes
de arcas que abrigam a precariedade de um sentido problemático,
reflexos confusos de um tudo fugidio, evanescente, conectadas com o universo,
as comunidades virtuais constroem e dissolvem constantemente suas micrototalidades
dinâmicas, emergentes, submersas, que derivam entre as correntes
cheias de turbilhões do novo dilúvio.
As tradições
se expandiam na diacronia da história. Os intérpretes, operadores
do tempo, transmissores das linhas de evolução, pontes entre
o futuro e o passado, reatualizavam a memória, transmitiam e inventavam
no mesmo movimento as idéias e as formas. As grandes tradições
intelectuais ou religiosas construíram, com paciência, bibliotecas-hipertextos,
às quais cada nova geração acrescentava seus nós
e laços. Inteligências coletivas sedimentadas, a Igreja ou
a universidade costuravam os séculos um com o outro. O Talmude gera
uma profusão de comentários nos quais os sábios de
ontem dialogam com os de anteontem.
Longe de desarticular o motivo
da «tradição», a cybercultura inclina-o num ângulo
de 45º, para arranjá-lo na ideal sincronia do ciberespaço.
A cybercultura encarna a forma horizontal, simultânea, puramente
espacial da transmissão. Só liga no tempo como acréscimo.
Sua principal operação está em conectar no espaço,
construir e estender os rizomas do sentido.
Eis o ciberespaço,
o pulular de suas comunidades, a ramificação entrelaçada
de suas obras, como se toda a memória dos homens se abrisse no instante:
um imenso ato de inteligência coletiva síncrona, convergindo
para o presente, raio silencioso, divergente, explodindo como uma cabeleira
de neurônios.
(1) Ver a obra de Bruno
Latour, Nous n'avons jamais été modernes. La Découverte,
Paris, 1991.
(2) Ver La société
du spectacle de Guy Debord, primeira edição: Buchet-Chastel,
Paris, 1967.
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