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  “e-mail from heraclitus and replay”
    Pierre Lévy
Send mail to: heraclitus @ philopresoc.éfeso.gr 
Subject: Nós nos banhamos todos na mesma luz 
From: levy @ neuropelab.unige.ch 
Date: 15 oct 1994 

  
 Obrigado por teu "mail". O que recebi do que escreveste era apaixonante, mas deve ter havido algum problema com o teu computador ou em alguma parte sobre a rede, porque não recebi senão fragmentos da mensagem completa. Mesmo assim te envio alguns comentários. Tu sabes o costume na Internet: nas respostas que se faz às mensagens eletrônicas, começa-se, geralmente, citando a passagem à qual queremos responder. Assim o farei: 
 "Não nos banhamos jamais duas vezes no mesmo rio". (Fragmento 91)  
 Tu falas do tempo, do futuro, do fluxo universal. Eu não me ocupo do mesmo rio, segunda e terça? Não está ele no mesmo lugar e com a mesma forma? Pois tua imagem bastante simples e evidente, designando a matéria fluente das coisas (pois a água, evidentemente, não é a mesma de um dia para o outro) nos faz colocar o dedo sobre a transformação incessante. 
 Mas eu poderia te responder que é sempre a mesma água, que se evapora do mar, passou ao céu em nuvens levadas pelo vento, caiu novamente como neve, retornou ao estado líquido, corre nos rios, volta ao oceano, etc. E todos os mares se misturam, todas as águas do planeta estão em comunicação. Logo, aqueles que se banham por toda a terra, nas piscinas, riachos, lagos, praias, todos se banham no mesmo rio, na mesma corrente cíclica com mil meandros, no grande sistema hídrico, na mesma flutuação aquática. 
 Tu evocas o fluxo para fazer compreender o tempo, o futuro. Tu queres dissolver as estabilidades. Quanto a mim, eu falo da água que corre para fazer surgir o espaços das interconexões. Eu pretendo dissolver as separações. Através da água transparente eu designo a inteligência, a imaginação. A água do espírito, talvez seja melhor chamá-la de luz? Se os "gênios" e "demônios" da rede destruirem ou apagarem a minha mensagem, se os computadores filtrarem este longo texto, que eles guardem ao menos este fragmento: a gente se banha, por toda a parte, na mesma luz. 
 Em outras palavras, nós pensamos juntos. Nós pensamos através das línguas, dos sistemas de signos, imagens e instrumentos comuns, transmitidos, partilhados. Mas não basta enunciar que não existe inteligência humana fora da cultura. Eu falo de um acontecimento em curso, de algo imenso, que vem, que está lá, leve, silencioso, quase impercetível e fulgurante: a comunidade pensante e o partilhar do conhecimento mudam de figura. A conexão telefônica de terminais e de memórias informáticas, a extensão das redes de transmissão digitais, ampliam cada dia um “cyberspace” mundial no qual todo o elemento de informação se acha em contato virtual com qualquer outro... Esta tendência, em ação há mais de 25 anos, fará sentir sempre, cada vez mais, seus efeitos, durante as décadas vindouras. A evolução em curso converge para a constituição de um novo meio de comunicação, de pensamento e de trabalho para as sociedades humanas... Minha esperança e a de meus amigos é que este novo meio favoreça a emergência de inteligências coletivas e não seja somente um novo campo posto à disposição do pulular de mercadorias.  
 Eu sei que contigo não haverá mal-entendidos, não farás a tradução de: "a gente se banha em qualquer lugar na mesma luz" por "é em toda a parte a mesma coisa". A inteligência coletiva não é a fusão das inteligências particulares em algum magma indistinto, não é como uma sopa uniforme, ao contrário, é um processo de crescimento, de diferenciação e de realce mútuo de singularidades. Algumas proposições de tua última "e-mail" necessitariam alguns esclarecimentos sobre este assunto, mas quem sabe eu teria compreendido tudo, se tivesse recebido a mensagem completa?  
 Por exemplo, tu dizes: 
 "o logos é comum, e no entanto, a multidão vive como se cada um tivesse sua própria inteligência." (Fragmento 2) 
 ou então:  
 "o pensamento é comum a todos". (Fragmento 113) 
 ou ainda: 
 "para aqueles que estão atentos, não há senão um só mundo comum". (Fragmento 89) 
 Eu me recordo de uma discussão nossa em Éfeso, junto ao templo de Afrodite, onde tinhas me explicado porque os que não dormem "retornam ao seu mundo próprio" - Isto não faria sentido a não ser no horizonte de um mundo comum. Tu davas a impressão de subentender que os que escolhessem se identificar como "particulares" ou membros de uma categoria à parte, seriam “idiotas” e que sua inteligência estaria adormecida.  
 Ora, o pensamento, o logos, o mundo único, eu não o concebo como realidades absolutas, pré-existentes, ou transcendentes, que devam se impor a todos, mas ao contrário, como uma construção em curso, uma emergência viva. É necessário sublinhar que a inteligência coletiva é o oposto da crença única, pois ela supõe um questionamento sempre aberto, em que a variedade interna é a sua própria condição de existência. Ao invés de afirmar a comunidade de pensamento, como tu o fazes, eu tenderia a interrogar sobre como as inteligências se fecundam mutuamente? Como se multiplicam? Como cada uma aumenta sua potência por seu "comércio" com os outros?  
 O cyberspace poderia ser um suporte, um instrumento da inteligência coletiva. Não se trata apenas de celebrar as transmissões planetárias instantâneas. Contudo, o rádio e a televisão, que estabelecem tais transmissões, não formam ainda um espaço de comunicação viva e clara entre centros emissores e receptores passivos. Além disso, os receptores em questão, estão isolados uns dos outros. De acordo com a estrutura de sua rede um-todos, eles são englobados ao interior do espaço de comunicação, mas comprimidos num pequeníssimo ponto, um lugar minúsculo: todo o mundo está dentro do estúdio sobre o estrado, junto à câmara do repórter. É um espaço restrito, estreito, forçado, sem a participação do receptor na mensagem recebida. É verdade que a televisão prolonga os nossos sentidos, mas em detrimento das interações sensório-motoras: nossos olhos e nossos ouvidos são comandados por algum outro. 
  Com o telefone, nós não nos confrontamos com um rede um-todos, mas com a interação indefinida de uma comunicação um-um. Certamente a relação é interativa, mas não poder ser comunicada, salvo por poucos personagens de cada vez. O usuário do telefone está privado da visão global do que se passa no conjunto da rede. Pela televisão, sabia-se, ao menos, que mensagens os outros tinham recebido, pois era o mesmo olho, a mesma orelha para milhões de pessoas. O telefone, ao contrário, nos deixa no escuro a respeito de tudo a não ser sobre a comunicação interindividual em curso. Nesta rede um-um a gente sempre fica fora do espaço comum. A gente não se banha por toda a parte na mesma luz, graças a um terceiro dispositivo de comunicação, estruturado como uma rede todos-todos. No cyberspace, tal como ele é hoje, cada um é potencialmente um emissor e um receptor, num espaço de comunicação qualitativamente diferenciado, não estratificado, explorável. O exemplo mais conhecido (e o mais primário) desta comunicação do terceiro tipo é o mundo das conferências eletrônicas. Aqui as pessoas não se encontram prioritariamente por seus nomes ou por suas posições geográficas, ou por suas posições sociais, mas segundo os centros de interesse: sobre um espaço do sentido ou do conhecimento. O "tópico" se torna um lugar. Existem milhares de tópicos. Este espaço dinâmico se reorganiza à medida que as conversações evoluem. Este mundo virtual é destilado pela comunicação, não havendo pois, uma construção pré-existente que a restrinja. Ele emerge num espaço dinâmico de subjetividade coletiva, bem diferente do telefone onde os endereços são fixos, individuais, distribuidos e tarifados segundo a geografia dos territórios. A comunicação todos-todos não está senão nos seus primeiros balbucios. Ela implica em modos virtuais que não sejam apenas simulações de lugares físicos mas acolhendo crescimentos autônomos de espaços simbólicos de universos de significações partilhadas. O cyberspace tem vocação de abrigar os meios vivos, "hipercontextos", ao seio dos quais cada um se sente efetivamente participante e que todos contribuem para modelar e povoar por meio de seus computadores. 
 O cyberspace como a nova realidade estruturada pelas trocas e fluxos de conhecimento, produz um espaço paradoxal, de tipo “Moebius" onde o interior e o exterior não cessam de passar de um a outro. Não somente porque se trata de realidades virtuais, nas quais mergulha-se e não se mergulha no mesmo momento, mas sobretudo porque neste novo universo os mapas são os territórios. O mapa eficaz (o mundo informático) modifica e dirige os processos materiais, grandes consumidores de energia o mapa está no território. Simetricamente, aqui como ai onde te encontras, o informacional, (o logos), o virtual, são eminentemente "reais": o território está no mapa e não somente é representado por ele. O território está sobre um lado do anel de Moebius, o mapa está sobre o outro, e eles passam um pelo outro. Sem desagradar a Van Vogt, o mapa é o território. 
  Na rede, as distâncias geográficas não tem mais importância. Poder acessar imediatamente a todas as informações públicas contidas nas memórias informatizadas onde quer que estejam situadas no mundo; poder participar de conferêncais eletrônicas alimentadas por textos e imagens, por toda a parte; poder construir, de maneira distribuida e cooperativada, mundos virtuais, totalmente não localizados em um determinado ponto; poder dispor do poder do cálculo de máquinas situadas a milhares de quilômetros, como se a gente estivesse junto a elas; tudo isso muda profundamente os dados do problema da comunicação. Além disso, não se trata apenas da possibilidade de transmissão de mensagens instantâneamente - de um ponto a outro do planeta - mas do surgimento de um meio de comunicação quase oceânico - da expansão de um plano semiótico, móvel, vivo e desterritorializado, no qual cada ponto é inteligente, cada ponto é uma fonte de informação, cada ponto é um ator dando forma ao espaço.  
 Virtualmente, todos os textos não formam senão um imenso "hipertexto"; todas as imagens não constituem mais que um só "hiperícone", infinito, caleidoscópio; todas as músicas compõem juntas uma imensa e inaudível polifonia. Instrumentos como "World Wide Web" do qual te fiz demonstração em Éfeso, por ocasião de minha última viagem  - e que tu passaste a utilizar cotidianamente - tem realizado parcialmente o sonho de Ted Nelson: constituir a literatura mundial como hipertexto, um hipertexto alimentado continuamente de um Niágara de caracteres transbordantes de todos teclados do planeta. Os agentes lógicos, os buscadores automáticos de informação e os "knowbots" tem por objeto filtrar a hipermídia mundial, de torná-la legível, praticável, navegável... 
 O horizonte da comunicação é a humanidade constituida em "hipercortex", este banho de luz que emana dos participantes da inteligência coletiva e os envolve. 
 Não creio ignorar teus argumentos. A cultura da separação parece estar aí por muito tempo e eu bem sei que nós não formamos ainda uma inteligência coletiva - e que mesmo de um ponto de vista prático e econômico - a rede não será acessível a todos. Mas te falo de nossas possíveis técnicas e de nosso horizonte cultural.  
 Muitos esforços vão nesta direção. Os chips de memória tornam-se cada vez menores, mais potentes e mais baratos. As capacidades de cálculo aumentam regularmente há meio século e as de transmissão crescem inelutavelmente. Tu, o filósofo do relâmpago, talvez já tenhas ouvido falar da fibra ótica, canal do qual um só filete, fino como um cabelo, pode conter todos os fluxos de mensagem telefônica dos Estados Unidos no dia das mães! Um equipamento minúsculo com esta fibra ótica nos daria mil vezes a capacidade de transmissão hertziana sobre todo o espectro de frequência. 
 Que fazer destas capacidades de transmissão e de cálculo instantâneas? Quem sabe como se formaria a comunicação quando não houvesse mais praticamente nenhum canal, mas uma mutação de espaço - quando o próprio espaço se torna canal interativo? Como seria uma civilização de telepresença generalizada? As consequências sobre o trabalho, a educação, o urbanismo, as cidade, bem como a subjetividades e as identidades serão imensas. Não é mais necessário, sem dúvida, raciocinar em termos de consequências ou de impacto - mas de projeto. 
 A gente se banha simultâneamente na mesma luz...Que queremos fazer do cyberspace? - Nós respondemos: “a inteligência coletiva”. 
 
 

 Send mail to: heraclitus @ philopresoc.éfeso.gr 
 Subject: Encontro com a "sobrelíngua" 
 From: levy @ neuropelab.unige.ch 
 Date: 20 oct 1994 
 

 Obrigado por tua resposta enigmática e fascinante como semrpe. Há verdadeiramente um problema na rede? Será que esta versão do UNIX não aceita caracteres em grego antigo? Ou tu fazes questão de enviar apenas pedaços de textos? De qualquer modo eu reajo como sempre a algumas proposições tuas. 
 "Quando à este logos que está eternamente, os homens são incapazes de compreendê-lo, mesmo antes de tê-lo escutado, como após escutá-lo pela primeira vez". ( Fragmento 1) 
 "À escuta, não de mim mesmo mas do logos, ele é sábio ao reconhecer que tudo é um".- (Fragmento 50) 
 "Este logos, com o qual estão em contínuo contato, que rege todas as coisas, eles se separam delas - e são as coisas que encontram no cotidiano que lhes parecem estranhas”. (Fragmento 72) 
 Do lugar de onde escrevo, talvez seja necessário exaltar a eternidade e a unidade do Logos (do discurso coerente, da ciência, da razão, da proporção...). Francamente, é preciso te dizer que, onde resido, muitas críticas foram emitidas sobre o valor de um tal Logos soberano e unificador. Ele tem sido julgado pelo seu uso. Alguns, onde estou, pensam mesmo que seria, talvez, tempo de experimentar outra coisa. Sem querer jogar fora toda a herança, nós tentamos imaginar uma espécie de pós-logos que propus chamar de "supralíngua" por razões de eufonia. 
 A "supralíngua" seria para o Logos o que a linguagme humana é para a linguagem das abelhas. Qual seria o sistema de signos, a gramática inescutada que corresponderia ao hipercórtex numérico, à comunicação todos-todos, aos mundos virtuais de signficiação, partilhados, à inteligência coletiva? 
 A multimídia interativa com suporte digital coloca explicitamente a questão do fim do logocentrismo, a questão das destituição de uma certa supremacia do discurso sobre os outros modos de comunicação. É possivel que a linguagem humana apareça simultâneamente sob muitas formas: oral, gestual, musical, icônica, plástica - cada expressão singular ativando tal ou qual zona de um "continuum semiótico", repercutindo de uma língua a outra, de um sentido ao outro, seguindo os rizomas da significação, atingindo tanto melhor as potências do espírito quanto ela atravessasse os corpos e os afetos. Não declaraste, tu mesmo, por ocasião de tua conferência virtual ao Futuroscopio que ... 
 "Se todas as coisas virassem fumaça, a gente as distinguiria pelas narinas"? (Fragmento 7) 

  Eu sei que aí, de onde me escreves, o Logos é desconhecido, minoritário, ainda por nascer. Mas de onde te respondo, o Logos é um soberano destronado, usado por longo reinado. Sistemas de dominação fundados sobre a escrita, tem isolado as línguas de outros modos de  expressão, estabeleceram-no matriz de um território semiótico, de agora em diante separado, parcelado, julgado segundo as exigências de um Logos dominador. Ora, a aparição das hipermídias, delineia em pontilhado uma possibilidade interessante (entre outras que o são menos) de uma restruturação aquém do caminho aberto pela escrita, aquém do logocentrismo triunfante, através da reabertura rica de todos os poderes do texto, um retorno armado de instrumentos desconhecidos, capazes de transforma-los em signos vivos. 
 Antes de se enclausurar na oposição fácil do texto razoável e da imagem  fascinante, não  seria necessário  tentar explorar  as possibilidades de pensamento e de expressão mais ricas, mais sutis, mais  refinadas, abertas  para mundos  virtuais às  simulações multimodais, aos suportes de escritas dinâmicas? 
 Na Jônia, tu tomas parte da invenção da filosofia, da ciência, da democracia.  O esforço que é exigido de nós, aqui, é sem dúvida ainda maior. Talvez seja necessário compará-lo ao que foi cumprido pelos nossos ancestrais quando da passagem de "homo habilis" a "homo sapiens”, ao inventarem a linguagem. 
 Os primeiros homens eram verdadeiramente nômades, eles seguiam as tropas de gado, que escolhiam elas mesmas sua alimentação, segundo as estações e as chuvas. Hoje “nomadisamos” atrás do futuro humano, um futuro que nos atravessa e que nós fazemos. O humano se voltou para si mesmo, seu próprio clima, uma estação infinita e sem retorno. Horda e tropas misturadas, cada vez menos separáveis de nossos instrumentos e de um modo estreitamente ligado a nossas caminhadas, nós percorremos cada dia uma estepe nova. 
 Os neandertalenses, bem adaptados às caçadas maravilhosas das tundras  glaciárias,  foram extintos,  quando  o  clima  muito rapidamente se humidificou e aqueceu.  Sua caça habitual desaparecia. Apesar de sua inteligência, estes homens que grunhiam ou eram mudos, não tinham voz, nem linguagem para se comunicar entre si. Assim, as soluções encontradas aqui e ali, a seus novos problemas, não puderam ser generalizadas. Eles permaneceram dispersos face á transformação do mundo ao seu redor. Eles não "mutaram" com o mundo. 
 Hoje, o homo sapiens faz face a uma modificação rápida de seu meio, transformação em que ele é o agente coletivo involuntário. Não pretendo aqui deixar subtendido que nossa espécie esteja ameaçada de extinção, nem que o "fim dos tempos" esteja próximo. Não se trata aqui de nenhum milenarismo. Eu me satisfaço em apontar uma alternativa... Ou nós ultrapassamos um novo limiar,  uma nova etapa de hominização, inventando algum atributo humano tão essencial quanto a linguagem, mas numa escala superior... ou bem nós continuamos a nos comunicar  pela mídia e a pensar, em instituições separadas umas das outras que organizem sobretudo o afogamento e a divisão das inteligências. Neste segundo caso nós não seríamos mais confrontados senão com problemas da sobrevida e do poder, mas se nós nos engajarmos sobre a via da inteligência coletiva, nós inventaremos progressi-vamente as técnicas,  os sistemas de signos, as formas de organização social e de regulação que nos permitirão pensar em conjunto, concentrar nossas forças intelectuais e espirituais, multiplicar, pensar em conjunto, concentrar nossas forças intelectuais e espirituais, multiplicar nossas imaginações e nossas experiências, negociar, em tempo real e em todas as escalas, as soluções práticas aos problemas complexos com que nos devemos confortar.  Nós aprenderíamos progressivamente a nos orientar em um novo cosmos em mutação, à deriva, a nos inventar coletivamente enquanto espécie. 
 A inteligência coletiva visa menos o seu próprio domínio pelas comunidades humanas do que "um deixar escapar" essencial que conduz à idéia de identidade, aos mecanismos de dominação e de detonamento de conflitos, ao desbloqueio de uma comunicação confiscada, ao relançar mútuo de pensamentos isolados. 
 Nós estamos, pois, na situação de uma espécie em que cada membro teria boa memória, seria observador astucioso, mas que não teria ainda se voltado para a inteligência coletiva de cultura, por defeito de linguagem articulada. Como inventar a linguagem quando jamais se falou, ou se nenhum de nossos ancestrais tivesse jamais proferido uma frase, se não existir exemplo, nem a menor idéia do que possa ser uma linguagem? Através desta analogia, apronta-se para uma situação presente: nós não sabemos o que devemos criar, o que talvez nós já tenhamos começado a esboçar obscuramente. Em alguns milênios, no entanto o "homo habilis" tornou-se "homo sapiens", transpôs um umbral semelhante, e se lançou no desconhecido, inventou a terra, os deuses e o mundo infinito da significação. 
 Mas as línguas são próprias para comunicação no seio de pequenas comunidades “em escala humana" e talvez para assegurar relações entre tais grupos. Graças á escrita, nós ultrapassamos uma nova etapa. Esta técnica autoriza um "algo mais" de eficácia da comunicação e organização de grupos humanos, muito maiores  do que as simples palavras teriam permitido. Isto aconteceu, entretanto, ao preço de uma divisão das sociedades entre uma máquina burocrática de tratamento da informação funcionando na escrita, por um lado, e das pessoas "administradas", por outro lado. O problema da inteligência coletiva é de descobrir ou inventar algo além da escrita, algo além da linguagem de tal modo que o tratamento da informação seja distribuída por toda parte e por todos coordenada. Que não seja mais apanágio de organismos sociais isolados, mas se integre, ao contrário, naturalmente, a todas as atividades humanas e retorne às mãos de cada um.  Esta nova dimensão da comunicação deveria, evidentemente, permitir-nos tornar mútuos nossos conhecimentos e de nos alertar reciprocamente - o que é a condição elementar da  inteligência coletiva.  Além disto, ela abriria duas possíveis majorações, que transformariam radicalmente os dados fundamentais da vida em sociedade.  Primeiro, nós disporíamos de meios simples  e práticos  para saber  o que  fazermos juntos.  Segundo, nós  manejaríamos a escrita muito mais facilmente do que hoje, com instrumentos que permitiriam enunciação coletiva.  E tudo isto não mais em escala de clãs paleolíticas, nem a nível do Estado e de instituições históricas do Território, mas segundo a amplitude e à velocidade das turbulências gigantescas, dos processos desterritorializados e do nomadismo antropológico que nos afetam hoje. Se nossas  sociedades se  contentassem em  ser apenas  inteligentemente dirigidas, é quase certo que não atingiriam seus  objetivos. Para ter algumas chances de viver melhor, elas devem se tornar inteligentes na massa popular. Para além da mídia, as maquinarias aéreas farão ouvir a voz do múltiplo.  Ainda indiscernível, abafada  pelas brumas do  futuro, banhado com seu  murmúrio uma outra  humanidade, nós temos um encontro com a "supralíngua". 
   
 
 
 
 
 

   
   Send mail to: heraclitus @ philopresoc.éfeso.gr 
   Subject: Labirinto negro e Labirinto branco 
   From: levy @ neuroplab.unige.ch 
   Date: 18 dec 1994 
   

 Obrigado pela tua resposta.  Para falar francamente eu esperava  um pouco por tua reação cética.  Tu me reprovas por não levar em conta a má conduta dos homens, sua vontade de dominar, seus eternos conflitos...Tu me dizeres que... 
 "Polémos (a guerra) é pai e rei de tudo" (fragmento 53) 
 Não acredito, entretanto, não ser fiel ao espírito de seu ensinamento. Com o projeto da inteligência coletiva, alguns amigos e eu perseguimos o empreendimento da emancipação da filosofia das luzes, da qual tu és indiretamente um dos principais inspiradores. Não creio que nós sejamos somente dois sonhadores. Nós sabemos  perfeitamente que não se pode manter a ficção de um progresso linear, automático, garantido, no qual, de certo, tu mesmo não acreditaste jamais. Neste fim de século XX, existe como que um extraordinário descrédito em relação à modernidade. O arcaico, o bárbaro de que me  falas no teu fragmento 107, nós o subestimamos aqui, também. Eles estão prestes a ressurgir ainda mais poderosos, ainda mais arcaicos do que jamais estiveram. Tudo coexiste: a mundialização (que faz de agora em diante, de cada guerra, uma guerra civil) com os fanatismos nacionais; as máfias triunfantes com os refinamentos da bioética; o continente cultural transversal de juventude urbana, suas insígnias e suas músicas; com o trabalho das crianças, a fome e a miséria junto às mega-máquinas mundiais de produção de sonhos das indústrias do  divertimento interativo; as multinacionais de alta tecnologia com a raridade da água; o cyberspace com o analfabetismo... O tempo não é linear, ele é múltiplo, em espiral, em turbilhões.  Talvez não sejamos nós pós-modernos, talvez não vivamos nós após a história, mas  antes  dela,  enquanto  todas  as  durações  estejam  ainda misturadas, momento fabuloso, fonte de uma história por acontecer, que não começou ainda a escoar.  Nós estaríamos vivendo no "tempo das origens", no arco mesmo, ao interior do "tempo místico", na grande  época das metamorfoses e dos animais que falam.  Ritmos, espaços, identidades possíveis, sendo ainda marcas sobre os dados de marfim sacudidos pelo tempo. Não mais o Cronos, o horrível deus que come seus  filhos, o castrador de seu pai, o Deus da sucessão linear, mas o tempo  dos tempos, a eternidade, a inocência. 
 "O tempo é uma criança que joga dados", me escreveste tu (fragmento 52). 
 Que humanidade sairá daí? Um mundo de guerra civil planetária surge sob nossos olhos, dominado pelas redes do crime e as elites "high-tech", condenando a maioria dos humanos a uma miséria sem esperança. Com o projeto da inteligência coletiva, nós queremos traçar uma outra via. 
 De novo, é isto possível? Podemos escapar à luta pelo poder, aos empreendimentos de dominações, à guerra? Polémos, não é ele pai e rei de tudo? Tua sentença, Heráclito o Grego, eu a recuso e interponho apelo diante do juiz dos infernos. 
 Muitos séculos antes de se apagar, na Jônia e na Ática, a Grécia luminosa das cidades, o antigo mundo helênico era dominado pela civilização nicena. Na Ilíada, é o rei de Micenas, Agamenon, que leva a expedição contra Tróia.  O universo anterior, no momento em  que me encontrei diante das ruínas da antiga fortaleza restaurada pelos arqueólogos, eu descobri muralhas de uma espessura de muitos metros, feita de blocos enormes, ciclópicos.  Nesta civilização  guerreira todo o esforço dos homens, toda a acumulação material servia para separar o interior do exterior. 
 Muito diferente da fortaleza de micenas - e bem anterior - o palácio de Cnossos foi durante séculos o principal centro de distribuição da  civilização minóica.  O palácio  cretense é desprovido de fortificações.  A sua cultura pacífica empregou seus esforços na complexidade da arquitetura, na decoração das salas, na beleza e engenhosidade do agenciamento interior (esgotos, rede de água potável, etc).  Toda energia investida em Micenas, na massa de paredões foi empregada em Cnossos para proliferar todo um luxo de  detalhes arquitetônicos: escadas, cortes, colunas, estátuas, andares, terraços, antesalas, grandes salas de banquetes, pequenas peças secretas, quartos de tesouros, cantos, becos... O palácio de Cnossos é infinitamente complicado, mas aberto sob o céu e o sol, por seus  cursos e poços de luz, ele se abre para o mundo e a cidade por suas portas e janelas.  Ele se conecta por estradas pavimentadas aos outros palácios de grandes cidades cretenses. Porque eles não viviam como vocês, os gregos, numa civilização polêmica, porque eles orientaram seu espírito para outros problemas além da defesa, do ataque, as relações de força e a dominação. Ao mesmo tempo que se abriam pelas artes e o comércio para outras  sociedades, dobraram e redobraram um mundo sobre si mesmo, fazendo raiar a fabulosa riqueza estética que precede e condiciona talvez o "milagre grego". 
 Porque eles não erigiram muralhas, os habitantes de Minos inventaram o labirinto, quer dizer, a complexificação cultural, inteligência coletiva projetada sobre o espaço arquitetural. 
 Quem é então o Minotauro? É a fera atemorizante que devorava os  jovens atenienses no fundo de seu antro obscuro? Mas esta é a tua  versão do Minotauro - a dos gregos. Mas vocês, os gregos polêmicos,  filhos de Micenas e leitores da Ilíada, podem compreender Cnossos, o  enigma de uma civilização irênica? Para mim o Minotauro, o homem-touro, não é senão o acróbata de Minos, a quem eu vi executar sobre o animal sagrado, saltos rituais perigosos. O Minotauro, o híbrido homem-touro, surgiu diante de meus olhos, no centro do  labirinto. No pátio central do palácio de Cnossos, sobre a praça ensolarada de um largo poço de luz, um homem jovem, ágil, gracioso, leve, dançava em pleno ar sobre os chifres do animal. 
 Não te desgostes, os habitantes de Minos não seriam vencidos na guerra. Sua cultura seria afundada após uma série de catástrofes naturais e das dispersões desencadeadas longe da ilha.  Não se encontra nenhum cadáver nos escombros do palácio incendiado.  Os  gregos não se implantaram em Creta senão após o declínio de sua  civilização original. 
 Teseu, matando o Minotauro, são os Micenos ocultando a civilização de Minos, uma civilização artística, técnica, mas sem armas e sem escravidão.  Vocês os gregos polêmicos, descobriram a Creta irênica. Sob o conflito, a paz.  Vocês submeteram Minos,  profundamente escondido no lugar mais baixo, pois vocês fizeram dele o juiz dos infernos. E sob o disfarce transparente de Zeus, é bem o Touro de Minos que leva a Europa. 
 Eu segui teus ensinamentos, Heráclito, e eu sei o que te devo. Mas nós devemos agora aprender a nos liberar do pensamento grego. O projeto de inteligência coletiva supõe o abandono da perspectiva do poder, inclusive e principalmente, no espaço do conhecimento. Este projeto quer abrir o vazio central, o poço de claridade, que permite o jogo com a alteridade, a quimerização e a complexidade labiríntica.  Ora, o palácio de luz, labirinto branco, traço arquitetônico de uma alegria de viver, de uma beleza, de uma leveza soberana, torna-se aos olhos  da polêmica, que não sabe senão se reconhecer, por toda a parte, o labirinto negro, a armadilha mortal abrigando um monstro comedor de  gente. A lenda do labirinto manifesta a incapacidade de encontrar a  saída pacífica, quanto ao horizonte do opaco futuro planetário, a  cultura do poder e da paz parece indecifrável. O linear B, escrita  do micenos em Creta, foi bem decodificada por nossos sábios. Mas  não se encontrou até hoje a chave do linear A, grafia dos habitantes de  Minos antes da conquista micena.  O enigma da paz persiste ainda selado.  Decifremos então o linear A, ou antes, inventemos a  ideografia dinâmica, a escrita do futuro, a supralinguagem dos  coletivos inteligentes.  Em lugar  se tornar mais espessas as  fortalezas do poder, refinemos a arquitetura do cyberspace, o último labirinto.  Sobre cada circuito integrado, sobre cada polegada eletrônica - vê-se e não se pode lê-lo - o algarismo secreto, o  emblema complicado  da inteligência coletiva,  mensagem irênica  dispersada à todos os ventos. 
 
 
 





Equipe de criação

16/05/1998