“e-mail from heraclitus
and replay”
Pierre Lévy
Send mail to: heraclitus @ philopresoc.éfeso.gr
Subject: Nós nos banhamos
todos na mesma luz
From: levy @ neuropelab.unige.ch
Date: 15 oct 1994
Obrigado por teu "mail". O que recebi do
que escreveste era apaixonante, mas deve ter havido algum problema com
o teu computador ou em alguma parte sobre a rede, porque não recebi
senão fragmentos da mensagem completa. Mesmo assim te envio alguns
comentários. Tu sabes o costume na Internet: nas respostas que se
faz às mensagens eletrônicas, começa-se, geralmente,
citando a passagem à qual queremos responder. Assim o farei:
"Não nos banhamos jamais duas vezes
no mesmo rio". (Fragmento 91)
Tu falas do tempo, do futuro, do fluxo universal.
Eu não me ocupo do mesmo rio, segunda e terça? Não
está ele no mesmo lugar e com a mesma forma? Pois tua imagem bastante
simples e evidente, designando a matéria fluente das coisas (pois
a água, evidentemente, não é a mesma de um dia para
o outro) nos faz colocar o dedo sobre a transformação incessante.
Mas eu poderia te responder que é
sempre a mesma água, que se evapora do mar, passou ao céu
em nuvens levadas pelo vento, caiu novamente como neve, retornou ao estado
líquido, corre nos rios, volta ao oceano, etc. E todos os mares
se misturam, todas as águas do planeta estão em comunicação.
Logo, aqueles que se banham por toda a terra, nas piscinas, riachos, lagos,
praias, todos se banham no mesmo rio, na mesma corrente cíclica
com mil meandros, no grande sistema hídrico, na mesma flutuação
aquática.
Tu evocas o fluxo para fazer compreender
o tempo, o futuro. Tu queres dissolver as estabilidades. Quanto a mim,
eu falo da água que corre para fazer surgir o espaços das
interconexões. Eu pretendo dissolver as separações.
Através da água transparente eu designo a inteligência,
a imaginação. A água do espírito, talvez seja
melhor chamá-la de luz? Se os "gênios" e "demônios"
da rede destruirem ou apagarem a minha mensagem, se os computadores filtrarem
este longo texto, que eles guardem ao menos este fragmento: a gente se
banha, por toda a parte, na mesma luz.
Em outras palavras, nós pensamos
juntos. Nós pensamos através das línguas, dos sistemas
de signos, imagens e instrumentos comuns, transmitidos, partilhados. Mas
não basta enunciar que não existe inteligência humana
fora da cultura. Eu falo de um acontecimento em curso, de algo imenso,
que vem, que está lá, leve, silencioso, quase impercetível
e fulgurante: a comunidade pensante e o partilhar do conhecimento mudam
de figura. A conexão telefônica de terminais e de memórias
informáticas, a extensão das redes de transmissão
digitais, ampliam cada dia um “cyberspace” mundial no qual todo o elemento
de informação se acha em contato virtual com qualquer outro...
Esta tendência, em ação há mais de 25 anos,
fará sentir sempre, cada vez mais, seus efeitos, durante as décadas
vindouras. A evolução em curso converge para a constituição
de um novo meio de comunicação, de pensamento e de trabalho
para as sociedades humanas... Minha esperança e a de meus amigos
é que este novo meio favoreça a emergência de inteligências
coletivas e não seja somente um novo campo posto à disposição
do pulular de mercadorias.
Eu sei que contigo não haverá
mal-entendidos, não farás a tradução de: "a
gente se banha em qualquer lugar na mesma luz" por "é em toda a
parte a mesma coisa". A inteligência coletiva não é
a fusão das inteligências particulares em algum magma indistinto,
não é como uma sopa uniforme, ao contrário, é
um processo de crescimento, de diferenciação e de realce
mútuo de singularidades. Algumas proposições de tua
última "e-mail" necessitariam alguns esclarecimentos sobre este
assunto, mas quem sabe eu teria compreendido tudo, se tivesse recebido
a mensagem completa?
Por exemplo, tu dizes:
"o logos é comum, e no entanto, a
multidão vive como se cada um tivesse sua própria inteligência."
(Fragmento 2)
ou então:
"o pensamento é comum a todos". (Fragmento
113)
ou ainda:
"para aqueles que estão atentos,
não há senão um só mundo comum". (Fragmento
89)
Eu me recordo de uma discussão nossa
em Éfeso, junto ao templo de Afrodite, onde tinhas me explicado
porque os que não dormem "retornam ao seu mundo próprio"
- Isto não faria sentido a não ser no horizonte de um mundo
comum. Tu davas a impressão de subentender que os que escolhessem
se identificar como "particulares" ou membros de uma categoria à
parte, seriam “idiotas” e que sua inteligência estaria adormecida.
Ora, o pensamento, o logos, o mundo único,
eu não o concebo como realidades absolutas, pré-existentes,
ou transcendentes, que devam se impor a todos, mas ao contrário,
como uma construção em curso, uma emergência viva.
É necessário sublinhar que a inteligência coletiva
é o oposto da crença única, pois ela supõe
um questionamento sempre aberto, em que a variedade interna é a
sua própria condição de existência. Ao invés
de afirmar a comunidade de pensamento, como tu o fazes, eu tenderia a interrogar
sobre como as inteligências se fecundam mutuamente? Como se multiplicam?
Como cada uma aumenta sua potência por seu "comércio" com
os outros?
O cyberspace poderia ser um suporte, um
instrumento da inteligência coletiva. Não se trata apenas
de celebrar as transmissões planetárias instantâneas.
Contudo, o rádio e a televisão, que estabelecem tais transmissões,
não formam ainda um espaço de comunicação viva
e clara entre centros emissores e receptores passivos. Além disso,
os receptores em questão, estão isolados uns dos outros.
De acordo com a estrutura de sua rede um-todos, eles são englobados
ao interior do espaço de comunicação, mas comprimidos
num pequeníssimo ponto, um lugar minúsculo: todo o mundo
está dentro do estúdio sobre o estrado, junto à câmara
do repórter. É um espaço restrito, estreito, forçado,
sem a participação do receptor na mensagem recebida. É
verdade que a televisão prolonga os nossos sentidos, mas em detrimento
das interações sensório-motoras: nossos olhos e nossos
ouvidos são comandados por algum outro.
Com o telefone, nós não nos
confrontamos com um rede um-todos, mas com a interação indefinida
de uma comunicação um-um. Certamente a relação
é interativa, mas não poder ser comunicada, salvo por poucos
personagens de cada vez. O usuário do telefone está privado
da visão global do que se passa no conjunto da rede. Pela televisão,
sabia-se, ao menos, que mensagens os outros tinham recebido, pois era o
mesmo olho, a mesma orelha para milhões de pessoas. O telefone,
ao contrário, nos deixa no escuro a respeito de tudo a não
ser sobre a comunicação interindividual em curso. Nesta rede
um-um a gente sempre fica fora do espaço comum. A gente não
se banha por toda a parte na mesma luz, graças a um terceiro dispositivo
de comunicação, estruturado como uma rede todos-todos. No
cyberspace, tal como ele é hoje, cada um é potencialmente
um emissor e um receptor, num espaço de comunicação
qualitativamente diferenciado, não estratificado, explorável.
O exemplo mais conhecido (e o mais primário) desta comunicação
do terceiro tipo é o mundo das conferências eletrônicas.
Aqui as pessoas não se encontram prioritariamente por seus nomes
ou por suas posições geográficas, ou por suas posições
sociais, mas segundo os centros de interesse: sobre um espaço do
sentido ou do conhecimento. O "tópico" se torna um lugar. Existem
milhares de tópicos. Este espaço dinâmico se reorganiza
à medida que as conversações evoluem. Este mundo virtual
é destilado pela comunicação, não havendo pois,
uma construção pré-existente que a restrinja. Ele
emerge num espaço dinâmico de subjetividade coletiva, bem
diferente do telefone onde os endereços são fixos, individuais,
distribuidos e tarifados segundo a geografia dos territórios. A
comunicação todos-todos não está senão
nos seus primeiros balbucios. Ela implica em modos virtuais que não
sejam apenas simulações de lugares físicos mas acolhendo
crescimentos autônomos de espaços simbólicos de universos
de significações partilhadas. O cyberspace tem vocação
de abrigar os meios vivos, "hipercontextos", ao seio dos quais cada um
se sente efetivamente participante e que todos contribuem para modelar
e povoar por meio de seus computadores.
O cyberspace como a nova realidade estruturada
pelas trocas e fluxos de conhecimento, produz um espaço paradoxal,
de tipo “Moebius" onde o interior e o exterior não cessam de passar
de um a outro. Não somente porque se trata de realidades virtuais,
nas quais mergulha-se e não se mergulha no mesmo momento, mas sobretudo
porque neste novo universo os mapas são os territórios. O
mapa eficaz (o mundo informático) modifica e dirige os processos
materiais, grandes consumidores de energia o mapa está no território.
Simetricamente, aqui como ai onde te encontras, o informacional, (o logos),
o virtual, são eminentemente "reais": o território está
no mapa e não somente é representado por ele. O território
está sobre um lado do anel de Moebius, o mapa está sobre
o outro, e eles passam um pelo outro. Sem desagradar a Van Vogt, o mapa
é o território.
Na rede, as distâncias geográficas
não tem mais importância. Poder acessar imediatamente a todas
as informações públicas contidas nas memórias
informatizadas onde quer que estejam situadas no mundo; poder participar
de conferêncais eletrônicas alimentadas por textos e imagens,
por toda a parte; poder construir, de maneira distribuida e cooperativada,
mundos virtuais, totalmente não localizados em um determinado ponto;
poder dispor do poder do cálculo de máquinas situadas a milhares
de quilômetros, como se a gente estivesse junto a elas; tudo isso
muda profundamente os dados do problema da comunicação. Além
disso, não se trata apenas da possibilidade de transmissão
de mensagens instantâneamente - de um ponto a outro do planeta -
mas do surgimento de um meio de comunicação quase oceânico
- da expansão de um plano semiótico, móvel, vivo e
desterritorializado, no qual cada ponto é inteligente, cada ponto
é uma fonte de informação, cada ponto é um
ator dando forma ao espaço.
Virtualmente, todos os textos não
formam senão um imenso "hipertexto"; todas as imagens não
constituem mais que um só "hiperícone", infinito, caleidoscópio;
todas as músicas compõem juntas uma imensa e inaudível
polifonia. Instrumentos como "World Wide Web" do qual te fiz demonstração
em Éfeso, por ocasião de minha última viagem
- e que tu passaste a utilizar cotidianamente - tem realizado parcialmente
o sonho de Ted Nelson: constituir a literatura mundial como hipertexto,
um hipertexto alimentado continuamente de um Niágara de caracteres
transbordantes de todos teclados do planeta. Os agentes lógicos,
os buscadores automáticos de informação e os "knowbots"
tem por objeto filtrar a hipermídia mundial, de torná-la
legível, praticável, navegável...
O horizonte da comunicação
é a humanidade constituida em "hipercortex", este banho de luz que
emana dos participantes da inteligência coletiva e os envolve.
Não creio ignorar teus argumentos.
A cultura da separação parece estar aí por muito tempo
e eu bem sei que nós não formamos ainda uma inteligência
coletiva - e que mesmo de um ponto de vista prático e econômico
- a rede não será acessível a todos. Mas te falo de
nossas possíveis técnicas e de nosso horizonte cultural.
Muitos esforços vão nesta
direção. Os chips de memória tornam-se cada vez menores,
mais potentes e mais baratos. As capacidades de cálculo aumentam
regularmente há meio século e as de transmissão crescem
inelutavelmente. Tu, o filósofo do relâmpago, talvez já
tenhas ouvido falar da fibra ótica, canal do qual um só filete,
fino como um cabelo, pode conter todos os fluxos de mensagem telefônica
dos Estados Unidos no dia das mães! Um equipamento minúsculo
com esta fibra ótica nos daria mil vezes a capacidade de transmissão
hertziana sobre todo o espectro de frequência.
Que fazer destas capacidades de transmissão
e de cálculo instantâneas? Quem sabe como se formaria a comunicação
quando não houvesse mais praticamente nenhum canal, mas uma mutação
de espaço - quando o próprio espaço se torna canal
interativo? Como seria uma civilização de telepresença
generalizada? As consequências sobre o trabalho, a educação,
o urbanismo, as cidade, bem como a subjetividades e as identidades serão
imensas. Não é mais necessário, sem dúvida,
raciocinar em termos de consequências ou de impacto - mas de projeto.
A gente se banha simultâneamente na
mesma luz...Que queremos fazer do cyberspace? - Nós respondemos:
“a inteligência coletiva”.
Send mail to: heraclitus @ philopresoc.éfeso.gr
Subject: Encontro com a "sobrelíngua"
From: levy @ neuropelab.unige.ch
Date: 20 oct 1994
Obrigado por tua resposta enigmática
e fascinante como semrpe. Há verdadeiramente um problema na rede?
Será que esta versão do UNIX não aceita caracteres
em grego antigo? Ou tu fazes questão de enviar apenas pedaços
de textos? De qualquer modo eu reajo como sempre a algumas proposições
tuas.
"Quando à este logos que está
eternamente, os homens são incapazes de compreendê-lo, mesmo
antes de tê-lo escutado, como após escutá-lo pela primeira
vez". ( Fragmento 1)
"À escuta, não de mim mesmo
mas do logos, ele é sábio ao reconhecer que tudo é
um".- (Fragmento 50)
"Este logos, com o qual estão em
contínuo contato, que rege todas as coisas, eles se separam delas
- e são as coisas que encontram no cotidiano que lhes parecem estranhas”.
(Fragmento 72)
Do lugar de onde escrevo, talvez seja necessário
exaltar a eternidade e a unidade do Logos (do discurso coerente, da ciência,
da razão, da proporção...). Francamente, é
preciso te dizer que, onde resido, muitas críticas foram emitidas
sobre o valor de um tal Logos soberano e unificador. Ele tem sido julgado
pelo seu uso. Alguns, onde estou, pensam mesmo que seria, talvez, tempo
de experimentar outra coisa. Sem querer jogar fora toda a herança,
nós tentamos imaginar uma espécie de pós-logos que
propus chamar de "supralíngua" por razões de eufonia.
A "supralíngua" seria para o Logos
o que a linguagme humana é para a linguagem das abelhas. Qual seria
o sistema de signos, a gramática inescutada que corresponderia ao
hipercórtex numérico, à comunicação
todos-todos, aos mundos virtuais de signficiação, partilhados,
à inteligência coletiva?
A multimídia interativa com suporte
digital coloca explicitamente a questão do fim do logocentrismo,
a questão das destituição de uma certa supremacia
do discurso sobre os outros modos de comunicação. É
possivel que a linguagem humana apareça simultâneamente sob
muitas formas: oral, gestual, musical, icônica, plástica -
cada expressão singular ativando tal ou qual zona de um "continuum
semiótico", repercutindo de uma língua a outra, de um sentido
ao outro, seguindo os rizomas da significação, atingindo
tanto melhor as potências do espírito quanto ela atravessasse
os corpos e os afetos. Não declaraste, tu mesmo, por ocasião
de tua conferência virtual ao Futuroscopio que ...
"Se todas as coisas virassem fumaça,
a gente as distinguiria pelas narinas"? (Fragmento 7)
Eu sei que aí, de onde me escreves,
o Logos é desconhecido, minoritário, ainda por nascer. Mas
de onde te respondo, o Logos é um soberano destronado, usado por
longo reinado. Sistemas de dominação fundados sobre a escrita,
tem isolado as línguas de outros modos de expressão,
estabeleceram-no matriz de um território semiótico, de agora
em diante separado, parcelado, julgado segundo as exigências de um
Logos dominador. Ora, a aparição das hipermídias,
delineia em pontilhado uma possibilidade interessante (entre outras que
o são menos) de uma restruturação aquém do
caminho aberto pela escrita, aquém do logocentrismo triunfante,
através da reabertura rica de todos os poderes do texto, um retorno
armado de instrumentos desconhecidos, capazes de transforma-los em signos
vivos.
Antes de se enclausurar na oposição
fácil do texto razoável e da imagem fascinante, não
seria necessário tentar explorar as possibilidades de
pensamento e de expressão mais ricas, mais sutis, mais refinadas,
abertas para mundos virtuais às simulações
multimodais, aos suportes de escritas dinâmicas?
Na Jônia, tu tomas parte da invenção
da filosofia, da ciência, da democracia. O esforço que
é exigido de nós, aqui, é sem dúvida ainda
maior. Talvez seja necessário compará-lo ao que foi cumprido
pelos nossos ancestrais quando da passagem de "homo habilis" a "homo sapiens”,
ao inventarem a linguagem.
Os primeiros homens eram verdadeiramente
nômades, eles seguiam as tropas de gado, que escolhiam elas mesmas
sua alimentação, segundo as estações e as chuvas.
Hoje “nomadisamos” atrás do futuro humano, um futuro que nos atravessa
e que nós fazemos. O humano se voltou para si mesmo, seu próprio
clima, uma estação infinita e sem retorno. Horda e tropas
misturadas, cada vez menos separáveis de nossos instrumentos e de
um modo estreitamente ligado a nossas caminhadas, nós percorremos
cada dia uma estepe nova.
Os neandertalenses, bem adaptados às
caçadas maravilhosas das tundras glaciárias,
foram extintos, quando o clima muito rapidamente
se humidificou e aqueceu. Sua caça habitual desaparecia. Apesar
de sua inteligência, estes homens que grunhiam ou eram mudos, não
tinham voz, nem linguagem para se comunicar entre si. Assim, as soluções
encontradas aqui e ali, a seus novos problemas, não puderam ser
generalizadas. Eles permaneceram dispersos face á transformação
do mundo ao seu redor. Eles não "mutaram" com o mundo.
Hoje, o homo sapiens faz face a uma modificação
rápida de seu meio, transformação em que ele é
o agente coletivo involuntário. Não pretendo aqui deixar
subtendido que nossa espécie esteja ameaçada de extinção,
nem que o "fim dos tempos" esteja próximo. Não se trata aqui
de nenhum milenarismo. Eu me satisfaço em apontar uma alternativa...
Ou nós ultrapassamos um novo limiar, uma nova etapa de hominização,
inventando algum atributo humano tão essencial quanto a linguagem,
mas numa escala superior... ou bem nós continuamos a nos comunicar
pela mídia e a pensar, em instituições separadas umas
das outras que organizem sobretudo o afogamento e a divisão das
inteligências. Neste segundo caso nós não seríamos
mais confrontados senão com problemas da sobrevida e do poder, mas
se nós nos engajarmos sobre a via da inteligência coletiva,
nós inventaremos progressi-vamente as técnicas, os
sistemas de signos, as formas de organização social e de
regulação que nos permitirão pensar em conjunto, concentrar
nossas forças intelectuais e espirituais, multiplicar, pensar em
conjunto, concentrar nossas forças intelectuais e espirituais, multiplicar
nossas imaginações e nossas experiências, negociar,
em tempo real e em todas as escalas, as soluções práticas
aos problemas complexos com que nos devemos confortar. Nós
aprenderíamos progressivamente a nos orientar em um novo cosmos
em mutação, à deriva, a nos inventar coletivamente
enquanto espécie.
A inteligência coletiva visa menos
o seu próprio domínio pelas comunidades humanas do que "um
deixar escapar" essencial que conduz à idéia de identidade,
aos mecanismos de dominação e de detonamento de conflitos,
ao desbloqueio de uma comunicação confiscada, ao relançar
mútuo de pensamentos isolados.
Nós estamos, pois, na situação
de uma espécie em que cada membro teria boa memória, seria
observador astucioso, mas que não teria ainda se voltado para a
inteligência coletiva de cultura, por defeito de linguagem articulada.
Como inventar a linguagem quando jamais se falou, ou se nenhum de nossos
ancestrais tivesse jamais proferido uma frase, se não existir exemplo,
nem a menor idéia do que possa ser uma linguagem? Através
desta analogia, apronta-se para uma situação presente: nós
não sabemos o que devemos criar, o que talvez nós já
tenhamos começado a esboçar obscuramente. Em alguns milênios,
no entanto o "homo habilis" tornou-se "homo sapiens", transpôs um
umbral semelhante, e se lançou no desconhecido, inventou a terra,
os deuses e o mundo infinito da significação.
Mas as línguas são próprias
para comunicação no seio de pequenas comunidades “em escala
humana" e talvez para assegurar relações entre tais grupos.
Graças á escrita, nós ultrapassamos uma nova etapa.
Esta técnica autoriza um "algo mais" de eficácia da comunicação
e organização de grupos humanos, muito maiores do que
as simples palavras teriam permitido. Isto aconteceu, entretanto, ao preço
de uma divisão das sociedades entre uma máquina burocrática
de tratamento da informação funcionando na escrita, por um
lado, e das pessoas "administradas", por outro lado. O problema da inteligência
coletiva é de descobrir ou inventar algo além da escrita,
algo além da linguagem de tal modo que o tratamento da informação
seja distribuída por toda parte e por todos coordenada. Que não
seja mais apanágio de organismos sociais isolados, mas se integre,
ao contrário, naturalmente, a todas as atividades humanas e retorne
às mãos de cada um. Esta nova dimensão da comunicação
deveria, evidentemente, permitir-nos tornar mútuos nossos conhecimentos
e de nos alertar reciprocamente - o que é a condição
elementar da inteligência coletiva. Além disto,
ela abriria duas possíveis majorações, que transformariam
radicalmente os dados fundamentais da vida em sociedade. Primeiro,
nós disporíamos de meios simples e práticos
para saber o que fazermos juntos. Segundo, nós
manejaríamos a escrita muito mais facilmente do que hoje, com instrumentos
que permitiriam enunciação coletiva. E tudo isto não
mais em escala de clãs paleolíticas, nem a nível do
Estado e de instituições históricas do Território,
mas segundo a amplitude e à velocidade das turbulências gigantescas,
dos processos desterritorializados e do nomadismo antropológico
que nos afetam hoje. Se nossas sociedades se contentassem em
ser apenas inteligentemente dirigidas, é quase certo que não
atingiriam seus objetivos. Para ter algumas chances de viver melhor,
elas devem se tornar inteligentes na massa popular. Para além da
mídia, as maquinarias aéreas farão ouvir a voz do
múltiplo. Ainda indiscernível, abafada pelas
brumas do futuro, banhado com seu murmúrio uma outra
humanidade, nós temos um encontro com a "supralíngua".
Send mail to: heraclitus @ philopresoc.éfeso.gr
Subject: Labirinto negro e Labirinto
branco
From: levy @ neuroplab.unige.ch
Date: 18 dec 1994
Obrigado pela tua resposta. Para falar
francamente eu esperava um pouco por tua reação cética.
Tu me reprovas por não levar em conta a má conduta dos homens,
sua vontade de dominar, seus eternos conflitos...Tu me dizeres que...
"Polémos (a guerra) é pai
e rei de tudo" (fragmento 53)
Não acredito, entretanto, não
ser fiel ao espírito de seu ensinamento. Com o projeto da inteligência
coletiva, alguns amigos e eu perseguimos o empreendimento da emancipação
da filosofia das luzes, da qual tu és indiretamente um dos principais
inspiradores. Não creio que nós sejamos somente dois sonhadores.
Nós sabemos perfeitamente que não se pode manter a
ficção de um progresso linear, automático, garantido,
no qual, de certo, tu mesmo não acreditaste jamais. Neste fim de
século XX, existe como que um extraordinário descrédito
em relação à modernidade. O arcaico, o bárbaro
de que me falas no teu fragmento 107, nós o subestimamos aqui,
também. Eles estão prestes a ressurgir ainda mais poderosos,
ainda mais arcaicos do que jamais estiveram. Tudo coexiste: a mundialização
(que faz de agora em diante, de cada guerra, uma guerra civil) com os fanatismos
nacionais; as máfias triunfantes com os refinamentos da bioética;
o continente cultural transversal de juventude urbana, suas insígnias
e suas músicas; com o trabalho das crianças, a fome e a miséria
junto às mega-máquinas mundiais de produção
de sonhos das indústrias do divertimento interativo; as multinacionais
de alta tecnologia com a raridade da água; o cyberspace com o analfabetismo...
O tempo não é linear, ele é múltiplo, em espiral,
em turbilhões. Talvez não sejamos nós pós-modernos,
talvez não vivamos nós após a história, mas
antes dela, enquanto todas as durações
estejam ainda misturadas, momento fabuloso, fonte de uma história
por acontecer, que não começou ainda a escoar. Nós
estaríamos vivendo no "tempo das origens", no arco mesmo, ao interior
do "tempo místico", na grande época das metamorfoses
e dos animais que falam. Ritmos, espaços, identidades possíveis,
sendo ainda marcas sobre os dados de marfim sacudidos pelo tempo. Não
mais o Cronos, o horrível deus que come seus filhos, o castrador
de seu pai, o Deus da sucessão linear, mas o tempo dos tempos,
a eternidade, a inocência.
"O tempo é uma criança que
joga dados", me escreveste tu (fragmento 52).
Que humanidade sairá daí?
Um mundo de guerra civil planetária surge sob nossos olhos, dominado
pelas redes do crime e as elites "high-tech", condenando a maioria dos
humanos a uma miséria sem esperança. Com o projeto da inteligência
coletiva, nós queremos traçar uma outra via.
De novo, é isto possível?
Podemos escapar à luta pelo poder, aos empreendimentos de dominações,
à guerra? Polémos, não é ele pai e rei de tudo?
Tua sentença, Heráclito o Grego, eu a recuso e interponho
apelo diante do juiz dos infernos.
Muitos séculos antes de se apagar,
na Jônia e na Ática, a Grécia luminosa das cidades,
o antigo mundo helênico era dominado pela civilização
nicena. Na Ilíada, é o rei de Micenas, Agamenon, que leva
a expedição contra Tróia. O universo anterior,
no momento em que me encontrei diante das ruínas da antiga
fortaleza restaurada pelos arqueólogos, eu descobri muralhas de
uma espessura de muitos metros, feita de blocos enormes, ciclópicos.
Nesta civilização guerreira todo o esforço dos
homens, toda a acumulação material servia para separar o
interior do exterior.
Muito diferente da fortaleza de micenas
- e bem anterior - o palácio de Cnossos foi durante séculos
o principal centro de distribuição da civilização
minóica. O palácio cretense é desprovido
de fortificações. A sua cultura pacífica empregou
seus esforços na complexidade da arquitetura, na decoração
das salas, na beleza e engenhosidade do agenciamento interior (esgotos,
rede de água potável, etc). Toda energia investida
em Micenas, na massa de paredões foi empregada em Cnossos para proliferar
todo um luxo de detalhes arquitetônicos: escadas, cortes, colunas,
estátuas, andares, terraços, antesalas, grandes salas de
banquetes, pequenas peças secretas, quartos de tesouros, cantos,
becos... O palácio de Cnossos é infinitamente complicado,
mas aberto sob o céu e o sol, por seus cursos e poços
de luz, ele se abre para o mundo e a cidade por suas portas e janelas.
Ele se conecta por estradas pavimentadas aos outros palácios de
grandes cidades cretenses. Porque eles não viviam como vocês,
os gregos, numa civilização polêmica, porque eles orientaram
seu espírito para outros problemas além da defesa, do ataque,
as relações de força e a dominação.
Ao mesmo tempo que se abriam pelas artes e o comércio para outras
sociedades, dobraram e redobraram um mundo sobre si mesmo, fazendo raiar
a fabulosa riqueza estética que precede e condiciona talvez o "milagre
grego".
Porque eles não erigiram muralhas,
os habitantes de Minos inventaram o labirinto, quer dizer, a complexificação
cultural, inteligência coletiva projetada sobre o espaço arquitetural.
Quem é então o Minotauro?
É a fera atemorizante que devorava os jovens atenienses no
fundo de seu antro obscuro? Mas esta é a tua versão
do Minotauro - a dos gregos. Mas vocês, os gregos polêmicos,
filhos de Micenas e leitores da Ilíada, podem compreender Cnossos,
o enigma de uma civilização irênica? Para mim
o Minotauro, o homem-touro, não é senão o acróbata
de Minos, a quem eu vi executar sobre o animal sagrado, saltos rituais
perigosos. O Minotauro, o híbrido homem-touro, surgiu diante de
meus olhos, no centro do labirinto. No pátio central do palácio
de Cnossos, sobre a praça ensolarada de um largo poço de
luz, um homem jovem, ágil, gracioso, leve, dançava em pleno
ar sobre os chifres do animal.
Não te desgostes, os habitantes de
Minos não seriam vencidos na guerra. Sua cultura seria afundada
após uma série de catástrofes naturais e das dispersões
desencadeadas longe da ilha. Não se encontra nenhum cadáver
nos escombros do palácio incendiado. Os gregos não
se implantaram em Creta senão após o declínio de sua
civilização original.
Teseu, matando o Minotauro, são os
Micenos ocultando a civilização de Minos, uma civilização
artística, técnica, mas sem armas e sem escravidão.
Vocês os gregos polêmicos, descobriram a Creta irênica.
Sob o conflito, a paz. Vocês submeteram Minos, profundamente
escondido no lugar mais baixo, pois vocês fizeram dele o juiz dos
infernos. E sob o disfarce transparente de Zeus, é bem o Touro de
Minos que leva a Europa.
Eu segui teus ensinamentos, Heráclito,
e eu sei o que te devo. Mas nós devemos agora aprender a nos liberar
do pensamento grego. O projeto de inteligência coletiva supõe
o abandono da perspectiva do poder, inclusive e principalmente, no espaço
do conhecimento. Este projeto quer abrir o vazio central, o poço
de claridade, que permite o jogo com a alteridade, a quimerização
e a complexidade labiríntica. Ora, o palácio de luz,
labirinto branco, traço arquitetônico de uma alegria de viver,
de uma beleza, de uma leveza soberana, torna-se aos olhos da polêmica,
que não sabe senão se reconhecer, por toda a parte, o labirinto
negro, a armadilha mortal abrigando um monstro comedor de gente.
A lenda do labirinto manifesta a incapacidade de encontrar a saída
pacífica, quanto ao horizonte do opaco futuro planetário,
a cultura do poder e da paz parece indecifrável. O linear
B, escrita do micenos em Creta, foi bem decodificada por nossos sábios.
Mas não se encontrou até hoje a chave do linear A,
grafia dos habitantes de Minos antes da conquista micena. O
enigma da paz persiste ainda selado. Decifremos então o linear
A, ou antes, inventemos a ideografia dinâmica, a escrita do
futuro, a supralinguagem dos coletivos inteligentes. Em lugar
se tornar mais espessas as fortalezas do poder, refinemos a arquitetura
do cyberspace, o último labirinto. Sobre cada circuito integrado,
sobre cada polegada eletrônica - vê-se e não se pode
lê-lo - o algarismo secreto, o emblema complicado da
inteligência coletiva, mensagem irênica dispersada
à todos os ventos.
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