A nova relação
com o saber
Toda e qualquer reflexão
séria sobre o devir dos sistemas de educação e formação
na cybercultura deve apoiar-se numa análise prévia da mutação
contemporânea da relação com o saber. A esse respeito,
a primeira constatação envolve a velocidade do surgimento
e da renovação dos saberes e do know-how. Pela primeira vez
na história da humanidade, a maioria das competências adquiridas
por uma pessoa no começo de seu percurso profissional serão
obsoletas no fim de sua carreira. A segunda constatação,
fortemente ligada à primeira, concerne à nova natureza do
trabalho, na qual a parte de transação de conhecimentos não
pára de crescer. Trabalhar equivale cada vez mais a aprender, transmitir
saberes e produzir conhecimentos. Terceira constatação: o
ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que ampliam, exteriorizam
e alteram muitas funções cognitivas humanas: a memória
(bancos de dados, hipertextos, fichários digitais [numéricos]
de todas as ordens), a imaginação (simulações),
a percepção (sensores digitais, telepresença, realidades
virtuais), os raciocínios (inteligência artificial, modelização
de fenômenos complexos).
Tais tecnologias intelectuais
favorecem novas formas de acesso à informação, como:
navegação hipertextual, caça de informações
através de motores de procura, knowbots, agentes de software, exploração
contextual por mapas dinâmicos de dados, novos estilos de raciocínio
e conhecimento, tais como a simulação, uma verdadeira industrialização
da experiência de pensamento, que não pertence nem à
dedução lógica, nem à indução
a partir da experiência.
Devido ao fato de que essas
tecnologias intelectuais, sobretudo as memórias dinâmicas,
são objetivadas em documentos numéricos (digitais) ou em
softwares disponíveis em rede (ou de fácil reprodução
e transferência), elas podem ser partilhadas entre um grande número
de indivíduos, incrementando, assim, o potencial de inteligência
coletiva dos grupos humanos.
O saber-fluxo, o saber-transação
de conhecimento, as novas tecnologias da inteligência individual
e coletiva estão modificando profundamente os dados do problema
da educação e da formação. O que deve ser aprendido
não pode mais ser planejado, nem precisamente definido de maneira
antecipada. Os percursos e os perfis de competência são, todos
eles, singulares e está cada vez menos possível canalizar-se
em programas ou currículos que sejam válidos para todo o
mundo. Devemos construir novos modelos do espaço dos conhecimentos.
A uma representação em escalas lineares e paralelas, em pirâmides
estruturadas por «níveis», organizadas pela noção
de pré-requisitos e convergindo até saberes «superiores»,
tornou-se necessário doravante preferir a imagem de espaços
de conhecimentos emergentes, abertos, contínuos, em fluxos, não-lineares,
que se reorganizam conforme os objetivos ou contextos e nos quais cada
um ocupa uma posição singular e evolutiva.
Assim sendo, tornam-se necessárias
duas grandes reformas dos sistemas de educação e formação.
Primeiro, a adaptação dos dispositivos e do espírito
do aprendizado aberto e à distância (AAD) no cotidiano e no
ordinário da educação. É verdade que o AAD
explora certas técnicas do ensino à distância, inclusive
a hipermídia, as redes interativas de comunicação
e todas as tecnologias intelectuais da cybercultura. O essencial, porém,
reside num novo estilo de pedagogia que favoreça, ao mesmo tempo,
os aprendizados personalizados e o aprendizado cooperativo em rede. Nesse
quadro, o docente vê-se chamado a tornar-se um animador da inteligência
coletiva de seus grupos de alunos, em vez de um dispensador direto de conhecimentos.
A segundo reforma envolve
o reconhecimento do aprendido. Ainda que as pessoas aprendam em suas experiências
profissionais e sociais, ainda que a escola e a universidade estejam perdendo
progressivamente seu monopólio de criação e transmissão
do conhecimento, os sistemas de ensino públicos podem ao menos dar-se
por nova missão a de orientar os percursos individuais no saber
e contribuir para o reconhecimento do conjunto de know-how das pessoas,
inclusive os saberes não-acadêmicos. As ferramentas do ciberespaço
permitem considerar amplos sistemas de testes automatizados acessíveis
a todo o momento e redes de transação entre a oferta e a
demanda de competência. Ao organizar a comunicação
entre empregadores, indivíduos e recursos de aprendizado de todas
as ordens, as universidades do futuro estariam contribuindo para a animação
de uma nova economia do conhecimento.
Este capítulo e o
próximo desenvolvem as idéias que acabam de ser expostas
e propõem, a título de conclusão, certas soluções
práticas (as «árvores de conhecimentos»).
A articulação
de uma multidão de pontos de vista sem ponto de vista de Deus
Em um de meus cursos na Universidade
Paris-8, intitulado “Tecnologias digitais e mutações culturais”,
eu peço para cada estudante apresentar uma exposição
de dez minutos. Na véspera das exposições, devo receber
uma síntese de duas páginas, acompanhada de uma bibliografia,
que poderá eventualmente ser fotocopiada pelos outros estudantes
que desejem aprofundar a questão.
Em 1995, um deles me entregou
suas duas páginas de resumo, dizendo com um certo mistério:
“Aqui está! Trata-se de uma exposição virtual!” Por
mais que eu leia seu trabalho sobre os instrumentos musicais digitais,
não vejo o que o diferencia das sínteses habituais: um título
em negrito, subtítulos, palavras sublinhadas num texto bastante
bem articulado, uma bibliografia. Divertido com meu ceticismo, leva-me
até a sala dos computadores e, acompanhados por outros estudantes,
instala-nos diante de um terminal. Descubro, então, que as duas
páginas de resumo a que eu havia recorrido no papel eram a projeção
impressa de páginas da Web.
Em vez de um texto localizado,
fixado num suporte de celulose, no lugar de um pequeno território
com um autor proprietário, um começo, um fim, margens formando
fronteiras, eu me via diante de um documento dinâmico, aberto, onipresente,
que me remetia para um corpus praticamente infinito. O mesmo texto mudara
de natureza. Fala-se em «página» em ambos os casos,
mas a primeira página é um pagus, um campo delimitado, apropriado,
semeado de sinais arraigados, a outra é uma unidade de fluxos, sujeita
às obrigações do caudal nas redes. Mesmo referindo-se
a artigos ou livros, a primeira página está fisicamente fechada.
A segunda, ao contrário, conecta-nos técnica e imediatamente
a páginas de outros documentos, espalhadas por todo o planeta, que
por sua vez nos remetem indefinidamente a outras páginas, a outras
gotas do mesmo oceano mundial de sinais flutuantes.
A partir da invenção
de uma pequena equipe do CERN, a World Wide Web propagou-se como pólvora
entre os usuários da internet para tornar-se, em poucos anos, um
dos principais eixos de desenvolvimento do ciberespaço. Talvez isso
não expresse mais do que uma tendência provisória.
Mas, pelos laços que ela lança para o resto da rede, pelos
cruzamentos ou as bifurcações que propõe, constitui-se
também numa seleção organizadora, um agente estruturante,
uma filtragem desse corpus. Cada elemento desse incircunscritível
novelo é, ao mesmo tempo, um pacote de informação
e um instrumento de navegação, uma parte do estoque e um
ponto de vista original sobre o referido estoque. Numa face, a página
Web forma a gotinha de um tudo fugidio, enquanto na outra face propõe
um filtro peculiar do oceano de informações.
Na Web, tudo está
no mesmo plano. Não obstante, tudo está diferenciado. Não
há nenhuma hierarquia absoluta, e cada sítio é um
agente de seleção, de encaminhamento ou de hierarquização
parcial. Longe de ser uma massa amorfa, a Web articula uma multidão
aberta de pontos de vista; porém, essa articulação
opera-se transversalmente, em rizoma, sem ponto de vista de Deus, sem unificação
superior. Que esse estado de coisas gera confusão, cada um o reconhece.
Novos instrumentos de indexação e pesquisa precisam ser inventados,
conforme atesta a riqueza dos trabalhos atuais sobre a cartografia dinâmica
dos espaços de dados, os “agentes” inteligentes ou a filtragem cooperativa
das informações. Ainda assim, quaisquer que sejam os progressos
vindouros das técnicas de navegação, é muito
provável que o ciberespaço conserve sempre seu caráter
profuso, aberto, radicalmente heterogêneo e não-totalizável.
O segundo dilúvio
e a inacessibilidade do tudo
Sem fechamento semântico
ou estrutural, a Web tampouco está parada no tempo. Aumenta, mexe-se
e transforma-se sem parar. A World Wide Web está fluindo, escoando.
Suas inumeráveis fontes, suas turbulências, sua irresistível
ascensão oferecem uma fantástica imagem da cheia contemporânea
de informação. Cada reserva de memória, cada grupo,
cada indivíduo, cada objeto pode tornar-se emissor e aumentar o
fluxo. A esse respeito e de maneira colorida, Roy Ascott fala do segundo
dilúvio. O dilúvio de informações. Para o melhor
ou o pior, esse dilúvio não será acompanhado por nenhum
refluxo. Devemos acostumarmo-nos a essa profusão e a essa desordem.
A não ser alguma catástrofe cultural, nenhum grande reordenamento,
nenhuma autoridade central nos levará de volta à terra firme,
nem às paisagens estáveis e bem balizadas anteriores à
inundação.
O ponto da virada histórica
da relação com o saber situa-se provavelmente no fim do século
XVIII, naquele momento de frágil equilíbrio em que o mundo
antigo brilhava com suas melhores luzes, enquanto as fumaças da
revolução industrial começavam a mudar a cor do céu.
Quando Diderot e d’Alembert publicavam sua grande Enciclopédia.
Até aquele momento, então, um pequeno grupo de homens podia
ter a esperança de dominar a totalidade dos saberes (ou ao menos
os principais) e propor aos outros o ideal desse domínio. O conhecimento
ainda podia ser totalizado, somado. A partir do século XIX, com
a ampliação do mundo, com a progressiva descoberta de sua
diversidade, com o crescimento cada vez mais rápido dos conhecimentos
científicos e técnicos, o projeto de domínio do saber
por um indivíduo ou um pequeno grupo tornou-se cada vez mais ilusório.
Tornou-se hoje evidente, tangível para todos, que o conhecimento
passou definitivamente para o lado do não-totalizável, do
indominável. Não podemos senão desistir.
A emergência do ciberespaço
não significa em absoluto que “tudo” esteja enfim acessível,
mas que o tudo está definitivamente fora de alcance. O que salvar
do dilúvio? O que é que colocaremos na arca? Pensar que poderíamos
construir uma arca que contivesse o “principal” seria precisamente ceder
à ilusão da totalidade. Todos nós, instituições,
comunidades, grupos humanos, indivíduos, necessitamos construir
um significado, providenciar zonas de familiaridade, domesticar o caos
ambiente. Mas, por um lado, cada um deve reconstruir à sua maneira
totalidades parciais, de acordo com seus próprios critérios
de pertinência. Por outro lado, essas zonas apropriadas de significado
deverão necessariamente ser móveis, mutantes, em devir. De
modo que, à imagem da grande arca, devemos substituir a flotilha
de pequenas arcas, botes ou sampanas, uma miríade de pequenas totalidades,
diferentes, abertas e provisórias, segregadas por filtragem ativa,
perpetuamente retomadas pelos coletivos inteligentes que se cruzam, se
chamam, se chocam ou se misturam nas grandes águas do dilúvio
informacional.
Hoje, pois, as metáforas
centrais da relação com o saber são a navegação
e o surfe, que implicam uma capacidade para enfrentar as ondas, os turbilhões,
as correntes e os ventos contrários numa extensão plana,
sem fronteiras e sempre mutante. Em contrapartida, as velhas metáforas
da pirâmide (escalar a pirâmide do saber), da escala ou do
curso (já todo traçado) têm aquele cheiro gostoso das
hierarquias imóveis de outrora.
Quem sabe? A reencarnação
do saber
As páginas Web expressam
as idéias, os desejos, os saberes, as ofertas de transação
de pessoas e grupos humanos. Atrás do grande hipertexto está
borbulhando a multidão e suas relações. No ciberespaço,
o saber não pode mais ser concebido como algo abstrato ou transcendente.
Está se tornando cada vez mais evidente — e até tangível
em tempo real — que esse saber expressa uma população. Não
só as páginas Web são assinadas, igualmente às
páginas de papel, como também costumam desembocar numa comunicação
direta, interativa, via correio digital, fórum eletrônico,
ou outras formas de comunicação por mundos virtuais, como
os MUDs ou os MOOs. Assim, ao contrário do que a vulgata mediática
deixa crer sobre a pretensa “frieza” do ciberespaço, as redes digitais
interativas são potentes fatores de personalização
ou encarnação do conhecimento.
Devemos lembrar sem cansar
a inanidade do esquema da substituição. Da mesma maneira
que a comunicação pelo telefone não tem impedido as
pessoas de encontrarem-se fisicamente, pois usamos o telefone para marcar
nossos encontros, a comunicação por mensagens eletrônicas
muitas vezes prepara viagens físicas, colóquios ou reuniões
de negócio. Mesmo quando não acompanha algum encontro material,
a interação no ciberespaço não deixa de ser
uma forma de comunicação. Ouve-se às vezes, porém,
o argumento de que certas pessoas passam horas “frente à tela”,
isolando-se dos outros. Não resta dúvida de que não
podemos encorajar os excessos. Mas será que dizemos de quem lê
que ele “passa horas diante de papel”? Não. Porque a pessoa que
lê não está se relacionando com uma folha de celulose,
mas está em contato com um discurso, com vozes, com um universo
de significado que ela contribui para construir, para habitar com sua leitura.
Que o texto esteja numa tela não muda em nada o fundo da questão.
Trata-se ainda de leitura, embora, conforme vimos, as modalidades da leitura
tendam a transformar-se com os hipertextos e a interconexão geral.
Ainda que os suportes de
informação não determinem automaticamente tal ou qual
conteúdo de conhecimento, eles não deixam de contribuir para
estruturar fortemente a «ecologia cognitiva» das sociedades.
Pensamos com e em grupos e instituições que tendem a reproduzir
suas idiossincrasias impregnando-nos com seu clima emocional e seus funcionamentos
cognitivos. Nossas faculdades para conhecer trabalham com línguas,
sistemas de sinais e procedimentos intelectuais fornecidos por uma cultura.
Não se multiplica da mesma maneira com cordas, nós, pedras,
números romanos, números arábicos, ábacos,
réguas de cálculo ou calculadoras. Ao não oferecer
as mesmas imagens do mundo, os vitrais das catedrais e as telas de televisor
não suscitam os mesmos imaginários. Certas representações
não podem sobreviver por muito tempo numa sociedade sem escrita
(números, tabelas, listas), enquanto é fácil arquivá-las
graças às memórias artificiais. Para codificar seus
saberes, as sociedades sem escrita desenvolveram técnicas de memória
apoiadas no ritmo, no relato, na identificação, na participação
do corpo e na emoção coletiva. Com a ascensão da escrita,
ao contrário, o saber pôde desvencilhar-se parcialmente das
identidades pessoais ou coletivas, tornar-se mais «crítico»,
almejar uma certa objetividade e um alcance teórico «universal».
Não são apenas os modos de conhecimento que dependem dos
suportes de informação e das técnicas de comunicação.
Também são, pelo intermédio das ecologias cognitivas
que elas condicionam, os valores e os critérios de julgamentos das
sociedades. Ora, são precisamente os critérios de avaliação
do saber (no sentido mais amplo da palavra) que entram no jogo com a extensão
da cybercultura, com o provável, já observável, declínio
dos valores vigentes na civilização estruturada pela escrita
estática. Não é que esses valores sejam chamados a
desaparecer, mas tornar-se-ão secundários, perderão
seu poder de comando.
Mais importante talvez do
que os gêneros de conhecimentos e os critérios de valor que
as polarizam, cada ecologia cognitiva favorece certos atores, postos no
centro dos processos de assimilação e exploração
do saber. Aqui a questão não é mais «como?»,
nem «segundo que critérios?», mas «quem?».
Nas sociedades anteriores
à escrita, o saber prático, mítico e real é
encarnado pela comunidade viva. A morte de um velho é uma biblioteca
em chamas. Com o advento da escrita, o saber é carregado pelo livro.
O livro, único, indefinidamente interpretável, transcendente,
que contém supostamente tudo: a Bíblia, o Alcorão,
os textos sacros, os clássicos, Confúcio, Aristóteles…
No caso, o intérprete é que domina o conhecimento. Desde
a prensa até esta manhã, um terceiro tipo de conhecimento
vê-se assombrado pela figura do cientista, do científico.
No caso, o saber não é mais carregado pelo livro, mas sim
pela biblioteca. A Enciclopédia de Diderot e d’Alembert é
menos um livro do que uma biblioteca. O saber é estruturado por
uma série de remissões, assombrado, talvez desde sempre,
pelo hipertexto. O conceito, a abstração ou o sistema servem,
então, para condensar a memória e garantir um domínio
intelectual que a inflação dos conhecimentos já está
pondo em perigo.
Talvez a desterritorialização
da biblioteca a que estamos presenciando hoje não seja senão
o prelúdio do surgimento de um quarto tipo de relação
com o conhecimento. Por uma espécie de volta em espiral até
a oralidade das origens, o saber poderia novamente ser carregado pelas
coletividades humanas vivas, do que por suportes separados, servidos por
intérpretes ou cientistas. Só que, dessa vez, ao contrário
da oralidade arcaica, o carregador direto do saber não seria mais
a comunidade física e sua memória carnal, mas sim o ciberespaço,
a região dos mundos virtuais pelo intermédio dos quais as
comunidades descobrem e constroem seus objetos e se conhecem como coletivos
inteligentes.
Os sistemas e os conceitos
estão doravante cedendo terreno aos finos mapas das singularidades,
à descrição detalhada dos grandes objetos cósmicos,
dos fenômenos da vida ou das matérias humanas. Tomemos todos
os grandes projetos tecnico-científicos contemporâneos: física
das partículas, astrofísica, genoma humano, espaço,
nanotecnologias, acompanhamento das ecologias e dos climas… estão
todos suspensos ao ciberespaço e às suas ferramentas. Os
bancos de dados de imagens, as simulações interativas e as
conferências eletrônicas permitem um melhor conhecimento do
mundo do que a abstração teórica, relegada ao segundo
plano. Ou melhor, eles definem a nova norma do conhecimento. Além
disso, tais ferramentas permitem uma eficaz coordenação dos
produtores de saber, enquanto teorias e sistemas suscitavam antes a adesão
ou o conflito. É impressionante constatar que certas experiências
realizadas nos grandes aceleradores de partículas mobilizam tantos
recursos, são tão complexas e difíceis de interpretar
que elas mal ocorrem mais de uma vez. Cada experiência é quase
que singular. Isso parece contradizer o ideal de reprodutibilidade da ciência
clássica. Ainda assim, essas experiências continuam universais;
porém, de outra maneira que não a possibilidade de reprodução.
Delas participam uma multidão de cientistas de todos os países,
que formam uma espécie de microcosmo ou de projeção
da comunidade internacional. Mas, e sobretudo, o contato direto com a experiência
praticamente desapareceu em proveito da produção em massa
de dados numéricos. Ora, esses dados podem ser consultados e processados
num grande número de laboratórios espalhados, graças
aos instrumentos de comunicação e processamento do ciberespaço.
Assim, o conjunto da comunidade científica pode participar dessas
experiências muito particulares, as quais são outros tantos
eventos. A universidade apóia-se, pois, sobre a interconexão
em tempo real da comunidade científica, sua participação
cooperativa nos eventos que lhe concernem, mais do que sobre a depreciação
do evento singular que caracterizava a antiga universalidade das ciências
exatas.
A simulação:
um modo de conhecimento próprio da cybercultura
Entre os novos gêneros
de conhecimento carregados pela cybercultura, a simulação
ocupa um lugar central. Numa palavra, trata-se de uma tecnologia intelectual
que decuplica a imaginação individual (aumento da inteligência)
e permite que grupos partilhem, negociem e refinem modelos mentais comuns,
qualquer que seja a complexidade de tais modelos (aumento da inteligência
coletiva). Para incrementar e transformar certas capacidades cognitivas
humanas (a memória, a imaginação, o cálculo,
o raciocínio expert), a informática exterioriza parcialmente
essas faculdades em suportes numéricos. Ora, ao serem exteriorizados
e reificados, esses processos cognitivos tornam-se partilháveis,
reforçando, portanto, os processos de inteligência coletiva…
desde que as técnicas sejam utilizadas com discernimento.
Até os sistemas experts
(ou sistemas baseados em conhecimentos), tradicionalmente postos na categoria
«inteligência artificial», deveriam ser considerados
como técnicas de comunicação e mobilização
rápida dos know-how de práticas nas organizações,
mais do que como duplicações de experts humanos. Tanto no
plano cognitivo quanto na organização do trabalho, as tecnologias
intelectuais devem ser pensadas em termos de articulação
e postas em sinergia, mais do que de acordo com o esquema da substituição.
As técnicas de simulação,
em particular as que envolvem imagens interativas, não substituem
os raciocínios humanos, mas prolongam e transformam as capacidades
de imaginação e pensamento. Com efeito, nossa memória
de longo prazo tem a capacidade para armazenar uma quantidade muito grande
de informações e conhecimentos. Nossa memória de curto
prazo, que contém as representações mentais às
quais prestamos deliberadamente nossa atenção, possui, ao
contrário, capacidades muito limitadas. Para nós é
impossível, por exemplo, representarmos clara e distintamente mais
de uma dezena de objetos em interações.
Embora possamos evocar mentalmente
a imagem do castelo de Versalhes, não conseguimos contar suas janelas
«em nossa cabeça». O grau de resolução
da imagem mental não é suficiente. Para chegar a esse nível
de detalhe, necessitamos de uma memória auxiliar externa (gravura,
fotografias, pintura), graças à qual poderemos efetuar novas
operações cognitivas: contar, medir, comparar, etc. A simulação
é uma ajuda para a memória de curto prazo que envolve não
imagens fixas, textos ou tabelas de números, e sim dinâmicas
complexas. A capacidade de fazer variar facilmente os parâmetros
de um modelo e observar de imediato e visualmente as conseqüências
dessa variação constitui-se numa verdadeira ampliação
da imaginação.
Hoje em dia, a simulação
exerce um papel crescente nas atividades de pesquisa científica,
de concepção industrial, de gestão, de aprendizado,
mas também para o jogo e a diversão (em especial os jogos
interativos na tela). Em teoria, em experiência, a maneira de industrialização
da experiência de pensamento – a simulação – é
um modo especial de conhecimento, próprio da cybercultura nascente.
Na pesquisa, seu principal interesse não está, evidentemente,
na substituição da experiência, nem em fazer as vezes
de realidades, mas em permitir a formulação e a rápida
exploração de um grande número de hipóteses.
Sob o ângulo da inteligência coletiva, ela permite a colocação
em imagens e a partilha de mundos virtuais e de universos de significado
de uma grande complexidade.
Doravante, os saberes são
codificados em bancos de dados acessíveis em linha, em mapas alimentados
em tempo real pelos fenômenos do mundo e em simulações
interativas. A eficiência, a fecundidade heurística, o poder
de mutação e bifurcação, a pertinência
temporal e contextual dos modelos estão suplantando os antigos critérios
de objetividade e universalidade abstrata. Está presente, no entanto,
uma forma mais concreta de universalidade pela capacidades de conexão,
o respeito de padrões ou formatos, a compatibilidade ou a interpolaridade
planetária.
Da interconexão caótica
à inteligência coletiva
Destotalizado, o saber flutua.
Donde vem um violento sentimento de desorientação. Deveremo-nos
crispar nos procedimentos e esquemas que garantiam a antiga ordem do saber?
Não devermos, ao contrário, dar um pulo e penetrar em cheio
na nova cultura, que oferece remédios específicos para os
males que a mesma gera? É certo que a interconexão em tempo
real de todos com todos é a causa da desordem. Mas ela é
também a condição de possibilidade das soluções
práticas para os problemas de orientação e aprendizado
no universo do saber em fluxo. Com efeito, essa interconexão favorece
os processos de inteligência coletiva nas comunidades virtuais, graças
a que o indivíduo vê-se menos desprovido frente ao casos informacional.
Mais precisamente, o ideal
mobilizador da informática não é mais a inteligência
artificial (tornar uma máquina tão inteligente, mais inteligente
até, quanto um homem), mas sim a inteligência coletiva, isto
é, a valorização, a utilização otimizada
e a colocação em sinergia das competências, imaginações
e energias intelectuais, independentemente de sua diversidade qualitativa
e de sua localização. Esse ideal da inteligência coletiva
passa evidentemente pela colocação em comum da memória,
da imaginação e da experiência, por uma prática
banalizada do intercâmbio de conhecimentos, por novas formas, flexíveis
e em tempo real, de organização e coordenação.
Embora as novas técnicas de comunicação favoreçam
o funcionamento, em inteligência coletiva, dos grupos humanos, cabe
repetir que elas não o determinam de maneira automática.
A defesa de poderes executivos, das rigidezes institucionais, a inércia
das mentalidades e das culturas podem evidentemente levar a utilizações
sociais das novas tecnologias muito menos positivas, conforme critérios
humanistas.
O ciberespaço, interconexão
dos computadores do planeta, tende a tornar-se a maior infra-estrutura
da produção, da gestão, da transação
econômica. Em breve, constituirá o principal equipamento coletivo
internacional da memória, do pensamento e da comunicação.
Em suma, daqui a algumas décadas, o ciberespaço, suas comunidades
virtuais, suas reservas de imagens, suas simulações interativas,
sua irreprimível profusão de textos e sinais serão
o mediador essencial da inteligência coletiva da humanidade. Com
esse novo suporte de informação e comunicação,
estão emergindo gêneros de conhecimentos inéditos,
critérios de avaliação inéditos para orientar
o saber, os novos atores na produção e no processamento dos
conhecimentos. Toda e qualquer política de educação
deverá levá-lo em consideração.
Mutações da
educação e economia do saber
Aprendizado aberto e à
distância
Os sistemas de educação
estão sofrendo hoje novas obrigações de quantidade,
diversidade e velocidade de evolução dos saberes. Num plano
puramente quantitativo, jamais foi tão maciça a demanda por
formação. Em muitos países, a maioria de uma classe
etária é que recebe um ensino de segundo grau. As universidades
estão mais do que lotadas. Os dispositivos de formação
profissional e contínua estão saturados. A título
de imagem, dir-se-á que metade da sociedade está, ou gostaria
de estar, na escola.
Será impossível
aumentar o número de professores proporcionalmente à demanda
de formação que é, em todos os países do mundo,
cada vez mais diversa e maciça. A questão do custo do ensino
surge mais especialmente nos países pobres. Ou seja, será
necessário decidir-se a encontrar soluções que apelem
para técnicas capazes de multiplicar o esforço pedagógico
dos professores e dos formadores. Audiovisual, «multimídia»
interativa, ensino assistido por computador, televisão educativa,
cabo, técnicas clássicas de ensino à distância
fundamentadas essencialmente na escrita, monitorado por telefone, fax ou
internet… Todas essas possibilidades técnicas, de uma maior ou menor
pertinência conforme seu conteúdo, a situação,
as necessidades do «aprendiz», podem ser consideradas e já
têm sido amplamente testadas e experimentadas. Tanto no plano das
infra-estruturas materiais quanto no dos custos de operação,
escolas e universidades «virtuais» custam menos do que as escolas
e universidades que ministram em «presencial».
A demanda por formação
não só está passando por um enorme crescimento quantitativo,
como também está sofrendo uma profunda mutação
qualitativa, no sentido de uma crescente necessidade de diversificação
e personalização. Os indivíduos suportam cada vez
menos acompanhar cursos uniformes ou rígidos que não correspondem
às suas reais necessidades e à especificidade de seus trajetos
de vida. Uma resposta ao crescimento da demanda por uma massificação
da oferta (mais da mesma coisa, com o fim de alcançar economias
de escala) seria uma resposta «industrialista» à antiga,
inadaptada à flexibilidade e à diversidade futuramente requeridas.
Vê-se como o novo
paradigma da navegação (em oposição ao do «cursus»),
que se está desenvolvendo nas práticas de coleta de informação
e de aprendizado cooperativo no seio do ciberespaço, mostra a via
de um acesso ao mesmo tempo maciço e personalizado ao conhecimento.
As universidades e, cada
vez mais, as escolas de primeiro e segundo graus oferecem aos estudantes
a possibilidade de navegar sobre o oceano de informação e
conhecimento acessível pela internet. Programas educativos podem
ser seguidos à distância pela World Wide Web. Os correios
e as conferências eletrônicas servem para a monitorização
inteligente e são postos ao serviço de dispositivos de aprendizado
cooperativo. Os suportes hipermídia (CD-ROM, bancos de dados multimídia
interativos e em linha) permitem acessos intuitivos rápidos e atrativos
a grandes conjuntos de informação. Sistemas de simulação
permitem que os aprendizes se familiarizem de maneira prática e
barata com objetos ou fenômenos complexos sem, por isso, sujeitarem-se
a situações perigosas ou difíceis de controlar.
Os especialistas da área
reconhecem que a distinção entre ensino «em presencial»
e ensino «à distância» será cada vez menos
pertinente, pois o uso das redes de telecomunicação e dos
suportes multimídia interativos está integrando-se progressivamente
às formas de ensino mais clássicas (1). O aprendizado à
distância tem sido durante muito tempo o «estepe» do
ensino e, em breve, tornar-se-á, se não a norma, ao menos
a cabeça pesquisadora. Com efeito, as características do
AAD são semelhantes às da sociedade da informação
em seu conjunto (sociedade de rede, de velocidade, de personalização,
etc.). Além disso, esse tipo de ensino está em sinergia com
as «organizações aprendizes» que uma nova geração
de administradores está procurando implantar nas sociedades.
O aprendizado cooperativo
e o novo papel dos docentes
O ponto essencial aqui é
a mudança qualitativa nos processos de aprendizado. Procura-se menos
transferir cursos clássicos em formatos hipermídia interativos
ou «abolir a distância» do que implementar novos paradigmas
de aquisição dos conhecimentos e de constituição
dos saberes. A direção mais promissora, que aliás
traduz a perspectiva da inteligência coletiva no campo educativo,
é a do aprendizado cooperativo.
Certos dispositivos informatizados
de aprendizado de grupo foram especialmente concebidos para a partilha
de diversos bancos de dados e o uso de conferências e mensagens eletrônicas.
Fala-se, então, em aprendizado cooperativo assistido por computador
(em inglês: Computer Supported Cooperative Learning ou CSCL). Nos
novos «campos virtuais», professores e estudantes põem
em comum os recursos materiais e informacionais à sua disposição.
Os professores aprendem ao mesmo tempo que os estudantes e atualizam continuamente
tanto seus saberes «disciplinares» quanto suas competências
pedagógicas. (A formação contínua dos docentes
é uma das aplicações mais evidentes dos métodos
do aprendizado aberto e à distância).
As últimas informações
atualizadas tornam-se fácil e diretamente acessíveis por
intermédio dos bancos de dados em linha e a www. Os estudantes podem
participar de conferências eletrônicas desterritorializadas,
nas quais intervêm os melhores pesquisadores de sua disciplina. Assim
sendo, a função-mor do docente não pode mais ser uma
«difusão dos conhecimentos», executada doravante com
uma eficácia maior por outros meios. Sua competência deve
deslocar-se para o lado do incentivo para aprender e pensar. O docente
torna-se um animador da inteligência coletiva dos grupos dos quais
se encarregou. Sua atividade terá como centro o acompanhamento e
o gerenciamento dos aprendizados: incitação ao intercâmbio
dos saberes, mediação relacional e simbólica, pilotagem
personalizada dos percursos de aprendizado, etc.
Rumo a uma regulação
pública da economia do conhecimento
As reflexões e as
práticas sobre a incidência das novas tecnologias na educação
têm-se desenvolvido em diversos eixos. Muitos trabalhos, por exemplo,
foram realizados sobre a «multimídia», enquanto suporte
de ensino, ou sobre os computadores, como substitutos incansáveis
dos professores (ensino assistido por computador ou EAC). Nessa visão
— extremamente clássica — a informática oferece máquinas
de ensinar. Seguido outra abordagem, os computadores são considerados
como instrumentos de comunicação, de pesquisa, de informação,
de cálculo, de produção de mensagens (textos, imagens
ou som) a serem postos nas mãos dos «aprendizes». A
perspectiva aqui adotada também é diferente. O uso crescente
das tecnologias digitais e das redes de comunicação interativa
está acompanhando e ampliando uma profunda mutação
da relação com o saber, da qual tentei traçar as grandes
linhas neste capítulo. Ao prolongar certas capacidades cognitivas
humanas (memória, imaginação, percepção),
as tecnologias intelectuais com suporte digital estão redefinindo
seu alcance, seu significado, às vezes até sua natureza.
As novas possibilidades de criação coletiva distribuída,
de aprendizado cooperativo e de colaboração em rede propiciada
pelo ciberespaço estão questionando o funcionamento das instituições
e os modos habituais de divisão do trabalho, tanto nas empresas
quanto nas escolas.
Como manter as práticas
pedagógicas em fase com processos de transação de
conhecimento em via de rápida transformação e, no
futuro, densamente divulgados na sociedade? Não se trata aqui de
utilizar a qualquer custo as tecnologias, mas sim de acompanhar consciente
e deliberadamente uma mudança de civilização que está
questionando profundamente as formas institucionais, as mentalidades e
a cultura dos sistemas educativos tradicionais e, notadamente, os papéis
de professor e aluno.
O que está em jogo
na cybercultura, tanto no plano da redução dos custos como
no do acesso de todos à educação, não é
tanto a passagem do «presencial» para a «distância»
e, tampouco, da escrita e do oral tradicionais para a «multimídia».
É sim a transição entre uma educação
e uma formação estritamente institucionalizada (escola, universidade)
e uma situação de intercâmbio generalizado dos saberes,
de ensino da sociedade por ela mesma, de reconhecimento autogerido, móvel
e contextual das competências. Nesse quadro, o papel do poder público
haveria de ser:
1) garantir a cada um uma
formação elementar de qualidade (2);
2) permitir para todos um
acesso aberto e gratuito a mediatecas, centros de orientação,
documentação e autoformação, a pontos de entrada
no ciberespaço, sem negligenciar a indispensável mediação
humana do acesso ao conhecimento;
3) regular e animar uma
nova economia do conhecimento, na qual cada indivíduo, cada grupo,
cada organização sejam considerados como recursos potenciais
de aprendizado ao serviço de percursos de formação
contínuos e personalizados.
Saber-fluxo e dissolução
das separações
Desde o fim dos anos 60 do
presente século, os seres humanos têm começado a experimentar
uma relação com os conhecimentos e os know-how que seus ancestrais
desconheciam. Com efeito, antes deste período, as competências
adquiridas na juventude via de regra continuavam em uso no fim da vida
ativa. Tais competências até eram transmitidas de maneira
quase idêntica para os jovens ou aprendizes. A bem da verdade, novos
procedimentos, novas técnicas surgiam. Contudo, inovações
que se destacassem num fundo de estabilidade eram a exceção.
Na escala de uma vida humana, a maior parte dos know-how úteis sutis
eram perenes. Ora, em nossos dias, a situação mudou radicalmente,
pois a maioria dos saberes adquiridos no começo de uma carreira
estarão obsoletos no fim de um percurso profissional, até
mesmo antes. As desordens da economia, assim como o ritmo precipitado das
evoluções científicas e técnicas, determinam
uma aceleração generalizada da temporalidade social. Por
causa disso é que os indivíduos e os grupos não se
deparam mais com saberes estáveis, com classificações
de conhecimentos herdadas e confortadas pela tradição, mas
sim como um saber-fluxo caótico, cujo curso é difícil
de prever e no qual a questão agora é aprender a navegar.
A relação intensa com o aprendizado, com a transmissão
e a produção de conhecimentos não está mais
reservado para uma elite, mas diz respeito à massa das pessoas em
sua vida diária e em seu trabalho.
Portanto, está superado
o velho esquema segundo o qual se aprende na juventude um ofício
que será exercido pelo resto da vida. Os indivíduos são
chamados a mudar de profissão várias vezes em sua carreira
e a própria noção de ofício está tornando-se
cada vez mais problemática. Melhor seria raciocinar em termos de
competências variadas, das quais cada um possuiria uma coleção
singular. Cabe às pessoas, então, manterem e enriquecerem
sua coleção de competência ao longo de sua vida. Essa
abordagem leva a questionar a divisão clássica entre período
de aprendizado e período de trabalho (pois se aprende o tempo todo),
bem como o ofício enquanto principal modo de identificação
econômica e social das pessoas.
Com a formação
contínua, a formação em alternância, os dispositivos
de aprendizado na empresa, a participação na vida associativa,
sindical, etc., está constituindo-se um continuum entre tempo de
formação, por um lado, e tempos de experiência profissional
e social por outro. Dentro desse continuum, um lugar está sendo
aberto para todas as modalidades de aquisição de competências
(inclusive a autodidaxia).
Para uma parcela crescente
da população, o trabalho não é mais a execução
repetitiva de uma tarefa prescrita, mas sim uma atividade complexa, na
qual a resolução inventiva de problemas, a coordenação
dentro de equipes e a gestão de relações humanas ocupam
lugares não-desprezíveis. A transação de informações
e conhecimentos (produção de saberes, aprendizado, transmissão)
é parte integrante da atividade profissional. Com o uso da hipermídia,
dos sistemas de simulação e das redes cooperativas de aprendizado
cada vez mais integrados aos postos de trabalho, a formação
profissional das empresas tende a integrar-se à produção.
A antiga relação
com a competência era substancial e territorial. Os indivíduos
reconheciam-se por seus diplomas, estes últimos ligados a disciplinas.
Os empregados de escritório eram identificados por postos, que declinavam
ofícios, que preenchiam funções. No futuro, tratar-se-á
muito mais de gerir processos, trajetos e cooperações. As
competências variadas, adquiridas pelas pessoas de acordo com seus
percursos particulares, irão alimentar memórias coletivas.
Acessíveis em linha, essas memórias dinâmicas em suportes
numéricos atenderão, por sua vez, a necessidades concretas,
aqui e agora, de indivíduos e grupos em situação de
trabalho ou aprendizado (é a mesma coisa). Assim, à virtualização
das organizações empresas «em rede» corresponderá
em breve uma virtualização da relação com o
conhecimento.
O reconhecimento do adquirido
Evidentemente, é para
esse novo universo do trabalho que a educação deve preparar.
Simetricamente, no entanto, deve-se admitir também o caráter
educativo ou formador de muitas atividades econômicas e sociais,
o que levanta evidentemente o problema de seu reconhecimento ou validação
oficial, sendo que o sistema de diplomas parece cada vez menos adequado.
Por outro lado, o tempo necessário para a homologação
de novos diplomas e para a constituição dos currículos
que levam a eles não está mais em fase com o ritmo de evolução
dos conhecimentos.
Pode parecer banal afirmar
que todos os tipos de aprendizado e formação devem poder
dar lugar a uma qualificação ou a uma validação
socialmente reconhecida. Atualmente, entretanto, estamos muito longe disso.
Um grande número de processos vigentes em curso por meio de dispositivos
formais de formação contínua, para falarmos apenas
das competências adquiridas durante as experiências sociais
e profissionais dos indivíduos, não geram hoje nenhuma qualificação.
A relação com o saber emergente, cujas grandes linhas eu
esbocei, traz o questionamento da estreita associação entre
duas funções dos sistemas educativos: o ensino e o reconhecimento
dos saberes. Como os indivíduos aprendem cada vez mais fora das
fileiras acadêmicas, cabe aos sistemas de educação
implantarem procedimentos de reconhecimento dos saberes e know-how adquiridos
na vida social e profissional. Para esse fim, serviços públicos
que explorassem em grande escala as tecnologias da multimídia (testes
automatizados, exames em simuladores) e da rede interativa (possibilidade
de fazer testes ou fazer reconhecer suas aquisições com a
ajuda de orientadores, monitores e examinadores em linha) poderiam aliviar
os docentes e as instituições educacionais clássicas
de uma tarefa de controle e validação menos «nobre»
— mas ainda necessária — do que o acompanhamento dos aprendizados.
Graças a esse grande serviço descentralizado e aberto de
reconhecimento e validação dos saberes, todos os processos,
todos os dispositivos de aprendizado, até os menos formais, poderiam
ser sancionados por uma qualificação dos indivíduos.
A evolução
do sistema de formação não pode ser dissociada da
evolução do sistema de reconhecimento dos saberes que o acompanha
e pilota. A título de exemplo, sabe-se que os exames é que
estruturam, a jusante, os programas de ensino. Utilizar todas as tecnologias
novas na educação e formação sem nada mudar
nos mecanismos de validação dos aprendizados equivale, ao
mesmo tempo, a aumentar os músculos da instituição
escolar e a bloquear o desenvolvimento de seus sentidos e cérebro.
Uma desregulação
controlada do atual sistema de reconhecimento dos saberes poderia favorecer
o desenvolvimento das formações alternadas e de todas as
formações que conferissem um lugar importante à experiência
profissional. Ao autorizar a invenção de modos originais
de validação, tal desregulação encorajaria
também as pedagogias pela exploração coletiva e todas
as formas de iniciativas a meia distância entre a experimentação
social e a formação explícita.
Semelhante evolução
não deixaria de gerar interessantes retroefeitos para certos modos
de formação de tipo escolar, freqüentemente bloqueados
em estilos de pedagogia pouco aptos para mobilizar a iniciativa, por orientar-se
apenas pela sanção final do diploma. Numa perspectiva ainda
mais ampla, a desregulação controlada do reconhecimento dos
saberes aqui referida estimularia uma socialização das funções
públicas da escola. Com efeito, ela permitiria que todas as forças
disponíveis concorressem ao acompanhamento de trajetos de aprendizados
personalizados, adaptados aos objetivos e às diversas necessidades
dos indivíduos e das comunidades implicadas.
Os desempenhos industriais
e comerciais das empresas, das regiões, das grandes zonas geopolíticas
estão em estreita correlação com políticas
de gestão do saber. Conhecimentos, know-how, competências
são hoje a principal fonte da riqueza das empresas, das grandes
metrópoles, das nações. Ora, vive-se hoje importantes
dificuldades na gestão dessas competências, tanto no nível
de pequenas comunidades como no das regiões. Do lado da demanda,
observa-se uma inadequação crescente entre as competências
disponíveis e a demanda econômica. Do lado da oferta, um grande
número de competências não são nem reconhecidas,
nem identificadas, mais especialmente entre os que não possuem um
diploma. Esses fenômenos são particularmente sensíveis
nas situações de reconversões industriais ou de atraso
de desenvolvimento de regiões inteiras. Deve-se, paralelamente aos
diplomas, imaginar modos de reconhecimento dos saberes que possam prestar-se
para uma visualização em rede da oferta de competência
e a uma pilotagem dinâmica retroativa da oferta pela demanda. Para
tanto, a comunicação através do ciberespaço
pode ser uma grande ajuda.
Uma vez aceito o princípio
segundo o qual toda e qualquer aquisição de competência
deve poder dar lugar a um explícito reconhecimento social, os problemas
da gestão das competências, tanto na empresa como no nível
das coletividades locais, estarão a caminho, se não de sua
solução, ao menos de sua mitigação.
(1) Open and Distance Learning,
Critical Success Factors. Accès à la formatoin à distance:
clés pour un développement durable. Editors: Gordon Davies
& David Tinsley. Atas, Conferência Internacional, Genebra, 10
a 12 de outubro de 1994, 203 páginas.
(2) Todos os especialistas
das políticas de educação reconhecem o papel essencial
da qualidade e da universalidade do ensino elementar para o nível
geral de educação de uma população. Além
disso, o ensino elementar abarca todas as crianças, enquanto o ensino
do segundo grau e, sobretudo, o superior envolvem apenas parte dos jovens.
Ora, o segundo grau e o superior públicos, que custam muito mais
do que o ensino elementar, são financiados pela totalidade dos contribuintes.
Existe aí uma fonte de desigualdade particularmente gritante nos
países pobres. Ver mais especialmente, de Sylvain Lourié,
Ecole et tiers monde, [Escola e Terceiro Mundo], Ed. Flammarion, Paris,
1993.
*
Trecho da obra «Cybercultura» a ser publicada a 21 de novembro
pela editora Odile Jacob (frança).
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